E o vinho torna-se bebida de… satanás

Sultão Muhammed, retratou essa cena regada a vinho.

Sultão Muhammed, retratou essa cena regada a vinho.

Enquanto o Império Romano se desintegrava, vinha ao mundo, na atual Arábia Saudita, bem distante de qualquer vinhedo, o homem que, sozinho, teria um efeito profundo sobre a história do vinho: Maomé. Oriundo de uma das culturas do Oriente Médio que, desde os tempos mais remotos, agradecia à dádiva do vinho (mesmo as vindimas árabes não sendo das melhores, o vinho fazia parte do cotidiano), ele proibiu a produção e o consumo da bebida. O respeito a essa determinação representava o fim da vitivinicultura e da fabricação de cerveja nos lugares onde o islã fosse a doutrina dominante.

 

No início do século VIII, os muçulmanos já tinham conquistado quase todo o Oriente Médio, além do norte da África e da Península Ibérica. Isso significava que uma religião que proibia qualquer tipo de bebida estava estabelecida em regiões onde o vinho havia nascido e onde a vitivinicultura era econômica e culturalmente importante. Dez anos após a morte de Maomé, em 632, o vinho fora completamente banido não só da Arábia, como em todos os países conquistados pelos muçulmanos.

 

Vinho proibido
A proibição ao vinho aconteceu após um incidente em Medina, quando os discípulos de Maomé estavam bebendo vinho e, depois de horas de consumo, acabaram brigando e matando-se entre si. A partir desse fato, a bebida foi proibida, os fiéis abandonaram o vinho e, segundo consta, todo o vinho de Medina foi despejado nas ruas. O profeta estabeleceu que quem violasse as regras deveria receber 40 chibatadas. Seu sucessor, o califa Omar, aumentou o número para 80, alegando que a embriaguez elevava a obscenidade.

 

Até o livro sagrado, o Alcorão, fazia várias referências ao vinho, tanto boas quanto ruins. Em seus versículos iniciais, o vinho aparece numa relação das coisas boas da terra, ao lado da água, do leite e do mel. “Nós vos damos os frutos da palmeira e da videira, dos quais tirareis bebidas inebriantes e alimentos saudáveis”. Mas, logo em seguida, segue-se uma advertência, que proibe o seu consumo: “Crentes, o vinho e os jogos de azar são abominações produzidas por satã. Fiquem longe dele se quiserem prosperar. Satanás tenta semear a inimizade e o ódio entre vocês por intermédio do vinho e do jogo. Perguntar-vos-ão acerca do vinho e do jogo. Respondereis que ambos encerram grande pecado e também coisas úteis aos homens: contudo seu aspecto pecaminoso supera sua utilidade”.

 

Resistência
Entretanto, isso não quer dizer que os árabes pararam de consumir vinho ou passaram a tomá-lo de forma moderada. Muitos seguidores de Maomé continuavam bebendo e justificavam o procedimento com outro versículo do Alcorão: “Nenhuma falta imputará, com relação à comida, àqueles que abraçaram a fé e realizaram boas ações, desde que temam a Alá, acreditem nele e pratiquem o bem”. Omar, porém, mandou flagelá-los.

 

A lei sobre abstinência criou também alguns problemas culturais. O vinho era tema constante na poesia árabe. O poeta Omar Khayyam escreveu: “Não posso viver sem vinho/ Não consigo suportar o peso do corpo sem vinho/ Eles dizem que os amantes e os bêbados vão para o inferno/ Se o amante e o bêbado forem para o inferno/ Amanhã o Paraíso estará vazio”.

 

Vinhedos perdidos
A proibição do consumo de álcool foi imposta de forma diferente nas diversas partes do império islâmico. Era mais rigorosa nas áreas próximas ao berço da religião. Nos pontos mais distantes conquistados pelos muçulmanos, as autoridades tendiam a ser mais tolerantes com as tradições locais. Na Espanha, Portugal, Sicília, Sardenha e Creta coexistiam várias diretrizes. Espanha e Portugal, por exemplo, nunca chegaram a perder seus vinhedos por causa do islã. Essas regiões distantes não sentiram tanto a imposição do islamismo, mas os vinhedos do Mediterrâneo Oriental e suas ilhas receberam tratamento duro e deixaram de elaborar vinho.

 

De tempos em tempos, as autoridades endureciam. Os califas do século X estabeleceram uma série de medidas para impedir a vitivinicultura, como despejar jarras de vinho no Nilo, arrancar vinhedos inteiros, queimar uvas e aumentar os impostos dos comerciantes de vinhos.

 

Todavia, foi o Império Otomano que, finalmente, expulsou o vinho de alguns de seus redutos mais tradicionais no Oriente Médio. Porém, outros motivos também determinaram o desaparecimento do vinho: o empobrecimento da região devido à invasão dos mongóis, a migração para as cidades, as epidemias e as guerras que dizimaram a população. A partida de negociantes judeus e cristãos, que eram responsáveis pela manutenção da indústria vinícola, também contribuiu para o declínio. Abandonados os vinhedos, o preço do vinho subiu e seu consumo caiu ainda mais. Quem não podia mais comprar vinho e queria inebriar-se aderiu ao haxixe.

 

Recuperação
Mesmo assim, e apesar das destruições dos vinhedos, os produtores de vinho recuperaram-se rapidamente a partir do século XIII, quando a autoridade cristã foi restabelecida em toda a Península Ibérica. Sabe-se que até no coração do islamismo o vinho e outras bebidas alcoólicas continuavam a ser produzidas e consumidas ilegalmente. Embora seja difícil saber todos os efeitos que a religião teve sobre o vinho, pode-se dizer que a viticultura foi redirecionada para o cultivo de uvas a serem comidas frescas ou secas; que o vinho produzido era de qualidade inferior e passou a ser feito em quantidade bem menor; e que a cultura vinícola, especialmente no Oriente Médio, praticamente desapareceu. Contudo, pelo menos na Europa, o vinho continuou culturalmente importante e bem posicionado, para um grande ressurgimento na Alta Idade Média.

 

Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; e História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.

 

Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação