História do Vinho – Parte X

Na gravura, a rendição fi nal de Bordeaux aos franceses, após séculos de dominção inglesa.

Na gravura, a rendição fi nal de Bordeaux aos franceses, após séculos de dominção inglesa.

A Idade Média transcorria, o vinho era elaborado, em sua maior parte, pela Igreja, e praticamente toda a população, nobres e camponeses, consumia a bebida. Foi nesse cenário que surgiu uma das regiões vinícolas expoentes do mundo: Bordeaux. A localidade apareceu no mercado no século XIII, após uma série de disputas dinásticas.

 

No período medieval, a Inglaterra e Bordeaux eram praticamente ‘casadas’, e essa união representou a mina de ouro que daria início à trajetória do famoso clarete. Mas, antes desse elo, Bordeaux – que produzia vinho como quase todas as regiões europeias – sofreu com a invasão dos bárbaros. Em 406, foram os godos, em 408 chegaram os vândalos e em 414, os visigodos. Mesmo após a chegada de Carlos Magno à região, em 764 – ele chegou a construir um castelo por lá –, os vikings apareceram e devastaram Bordeaux. No ano de 870, a localidade estava totalmente destruída, incluindo muitos dos seus vinhedos. Mesmo produzindo uma quantidade pequena de vinho, fez-se um ‘silêncio’ por cerca de 250 anos.

 

Isso mudou em 1152, quando Eleanor da Aquitânia (da região que inclui Gasconha e, consequentemente, Bordeaux e Poitou) casou-se com Henrique, duque da Normandia e conde de Anjou. Dois anos depois, ele se tornou Henrique II da Inglaterra, fazendo com que Inglaterra, Normandia e Aquitânia ficassem sob a mesma coroa, e criou o famoso elo entre Bordeaux e Inglaterra. Mais tarde, seu filho Ricardo Coração de Leão devolveu o ducado a sua mãe e ela decidiu favorecer La Rochelle, em detrimento de Bordeaux. Somente quando João, o filho mais novo de Eleanor, se tornou rei da Inglaterra, Bordeaux conseguiu sair da sombra de La Rochelle – mesmo assim, por um acordo dinástico: João concordou em reduzir os impostos, em troca do apoio de Bordeaux em sua guerra contra o rei da França. Esse acordo deu a Bordeaux uma proeminência comercial. Tempos depois, devido a protestos, La Rochelle e Poitou também receberam o benefício fiscal. Entretanto, João, para mostrar o apoio a Bordeaux, fez uma grande encomenda de vinho daquela região e a viticultura foi intensificada. Com o apoio, os produtores locais adotaram medidas restritivas para proteger seu produto. Sob as novas regras, os vinhos de Gasconha não podiam ser levados para Bordeaux para exportação antes de uma data determinada. Dessa forma, os vinhos das regiões mais próximas de Bordeaux não tinham concorrentes no restante do ano. Em 1282, o rei Eduardo I comprou 600 barris para abastecer suas tropas. Em 1335, os vinhos de Bordeaux representavam 80% da exportação vinícola para a Inglaterra e já se destacavam como ‘vins de France’. No século XIV, o comércio vinícola atingiu seu apogeu, com 900 milhões de litros.
A pergunta que fica é: como Bordeaux atingiu esse posto? A região não se diferenciava das demais. Era constituída de pequenos produtores, sem domínios senhorais, nem grandes mosteiros. Mas tinha uma particularidade e a explicação mais óbvia era o tal clairet, em francês, o famoso clarete, que se aplicava unicamente a Bordeaux. O vinho vermelho-claro ou rosé era o melhor que a região tinha a oferecer, e o que mais condizia com o paladar inglês. O método de elaboração do clarete era o mesmo do atual vinho rosé, ou, mais precisamente, do vinho que os franceses chamam de vin d’une nuit – vinho de apenas uma noite em cuba. Pisavam-se as uvas na maneira habitual e o vinho fermentava, a princípio, com as cascas, durante um período de 24 horas. Trasfegava-se, então, o líquido claro para os barris, onde acabava de fermentar. O vinho que permanecia por mais tempo na cuba com as cascas tinha uma cor mais intensa, sendo conhecido como vin vermeilh ou pinpin. Representava 15% da safra e era considerado muito escuro e áspero. Uma pequena quantidade era usada para dar mais cor ou intensidade ao clarete, provavelmente produzido com as ancestrais da Cabernet e da Merlot.

 

Esse vinho, ainda jovem, era, no mês de outubro, levado de navio à Inglaterra. A viagem demorava cerca de uma semana. Caso o vinho permanecesse nos depósitos de Bordeaux depois de dezembro, era trasfegado, colocado em barris novos e exportado na primavera. Conhecidos como reck, estes vinhos eram considerados de qualidade inferior e vendidos a um baixo preço. Além da Inglaterra, as exportações iam para Espanha, Alemanha e outras partes da França.

 

O sucesso dos vinhos franceses fez com que os vinicultores ingleses perdessem espaço e não demorou muito para que os vinhedos da Inglaterra fossem arrancados e dessem lugar a outras culturas. Os Borgonha começaram a se impor na mesma época que os de Bordeaux, mas, na prática, não chegavam à Inglaterra. Em meados do século XIII, Bordeaux respondia por três quartos da adega real inglesa.

 

Porém, apesar do boom na viticultura, a região francesa sofreu com a peste negra, com as instabilidades políticas e com uma guerra entre a Inglaterra e a França. As exportações caíram consideravelmente durante esse período. A venda foi proibida aos inimigos, mas logo os franceses perceberam a importância do comércio vinícola para a economia de Bordeaux. E ao invés de proibir, impuseram um imposto sobre a bebida. O preço tornou-se duas vezes mais alto e essa foi uma brecha para que os vinhos do Mediterrâneo entrassem no mercado.
Contribuiu para isso também a deflagração da Guerra dos Cem Anos. Na última fase, em 1453, os ingleses retomaram a Normandia e a maior parte da França setentrional, Joana d’Arc surgiu com os atos heróicos e formou-se entre a Inglaterra e, sim, Borgonha, uma aliança que colocou os franceses numa situação desesperadora.

 

Coube à Borgonha decidir o desfecho. É bastante improvável, mas não deixa de ser divertido supor que a Borgonha foi a responsável pelo rompimento dos vínculos entre Bordeaux e Inglaterra. Em 1435, o duque Filipe ‘virou a casaca’ e os ingleses passaram à defensiva. Em 1438, os franceses devastaram os vinhedos, e a produção caiu de 80 mil toneladas por ano para 10 mil. O rompimento aconteceu por vários motivos: o descontentamento dos ingleses, as guerras religiosas e a quantidade cada vez maior de bons vinhos de outros países que não tinham tantos problemas…

 

Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.

 

Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação