História do Vinho – Parte XV

História do Vinho – Parte XVSe o vinho é a bebida dos deuses, o espumante é das estrelas. De todos os grandes vinhos do mundo, ele é o único popularmente atribuído a um inventor: o monge beneditino Dom Pierre Pérignon. Reza a história que Pérignon desenvolveu as bolhas no vinho por acaso e que, ao beber daquela safra não-planejada, exclamou: “Estou bebendo estrelas”. A respeito do monge circulam muitas lendas, como a da repentina efervescência do champagne em sua adega; a da cegueira; a de ser o primeiro a usar rolhas… De todas elas, a única comprovada é que Pérignon fez de tudo para eliminar as bolhas do vinho elaborado em sua abadia. Sim, o inventor do espumante queria tudo, menos borbulhas. Sabe-se que o espumante, do qual o champagne é o exemplo mais conhecido, é feito mantendo-se o dióxido de carbono no recipiente de fermentação (garrafa ou tonel), em vez de deixá-lo sair. O gás é mais tarde dissolvido no vinho, mas quando o recipiente é aberto o dióxido de carbono emerge em forma de pequenas bolhas.
Porém, comecemos do princípio. A criação do espumante foi decorrência de um longo processo e, ao que parece, aconteceu na abadia de Hautvillers (onde Pérignon era monge e tesoureiro), na região da Champagne (França), no século XVII. O local era conhecido pelo vinho levemente rosado, sem bolhas, elaborado a partir da uva Pinot Noir.

 

História do Vinho – Parte XV1Dom Pérignon
Hautvillers foi fundada em 650, como um local de oração incessante e trabalho incansável. Abrigava os restos mortais de Santa Helena, mãe do imperador Constantino. Em 1668, Dom Pérignon, então com 29 anos, foi nomeado tesoureiro de Hautvillers. Nessa época, a abadia se recuperava de três catastróficos decênios de guerras contínuas e ocupação militar. E mesmo com os constantes conflitos, foi nesse período que o champagne deu seu grande salto para a fama.
Ao assumir a função de tesoureiro, Pérignon já decidira desenvolver suas atividades vinícolas. O abade mandou construir uma grande adega para abrigar os vinhos elaborados a partir dos cerca de dez hectares de vinhedos de Hautvillers e também das uvas (dízimos da época) das aldeias vizinhas. Pérignon organizou a vindima de modo a conseguir um vinho totalmente branco (como vimos em capítulos anteriores dessa série, vinhos brancos não eram comuns). Ao mesmo tempo, estudou os melhores vinhedos, o melhor momento, as melhores técnicas e a melhor maneira de preservar o vinho para torná-lo tão aromático quanto possível. O monge, inclusive, estabeleceu determinadas regras, que foram registradas em 1718, três anos após a sua morte. As regras diziam: primeiro, “utilizar apenas Pinot Noir”. Os vinhedos da região produziam também Pinot Meunier, Pinot Gris, Pinot Blanc e Chardonnay, mas Pérignon desaprovava essas uvas brancas, que reforçavam uma tendência à refermentação. A segunda regra apontava que era essencial podar bem as videiras, para que produzissem poucas uvas, de modo que os pés não passassem de 90 centímetros de altura. Em terceiro, estava o cuidado na hora da colheita, que devia ser feita nas primeiras horas da manhã, e também uma atenção especial quanto à escolha das uvas pequenas, consideradas melhores que as grandes. A última regra dizia que de forma alguma se deveria pisar nas uvas e tampouco permitir que as cascas macerassem no sumo. Todos os registros comprovam: Pérignon estudou sua matéria-prima com extrema atenção e fez com que os vinhos produzidos na abadia alcançassem o valor de novecentas libras a pipa (normalmente, os vinhos eram vendidos a quinhentas libras).

 

Tudo, menos bolhas
Mas o que poucas pessoas imaginam é que Pérignon abominava as bolhas do champagne. Ele procurava evitar ao máximo que ele borbulhasse. Numa cultura de vinhos não-espumantes, era provável que as bolhas fossem consideradas um defeito a ser corrigido, ao invés de uma inovação. E Pérignon conhecia melhor que ninguém esse assunto (independente de gostar ou não das bolhas). O monge sabia que o vinho mais leve e ácido, resultante de uvas colhidas numa safra mais fria, fermentava inadequadamente no outono e, portanto, tinha maior possibilidade de tornar-se efervescente no ano seguinte. Sendo mais leves e mais sujeitos à refermentação, os vinhos brancos feitos com uvas brancas eram acrescentados em quantidade cada vez maior aos vinhos brancos feitos com uvas tintas. Em princípio, o desejo de obter efervescência levou os produtores ao exagero de colher uvas ainda verdes.

 

Todavia, o que causava maior transtorno eram as garrafas. Tanto que, expedida uma encomenda, o comprador assumia o risco relativo à quebra dos recipientes. Dependendo da safra, explodiam cerca de 20% a 90% das garrafas. Chegou-se ao cúmulo de percorrer uma adega de champagne com uma máscara de ferro que protegesse o rosto dos eventuais estilhaços de vidro. Isso mudou com o aprimoramento das garrafas de vidro (como vimos na edição passada), que diminuíram as freqüentes explosões.

 

Além das garrafas, outro problema era o sedimento. Toda refermentação produz um resíduo de células mortas de levedura, que se depositam na garrafa, enfeando o produto. Era por isso que as taças fabricadas no início do século XVIII possuíam uma superfície ondulada para esconder os sedimentos (o método Champenoise só teria início cem anos depois).

 

Como a história do champagne deixa claro, todos esses problemas foram superados e as bolhas venceram. Luiz XIV, o rei Sol, jamais bebera outra coisa, e, em 1674, o champagne gozava de tanto prestígio que nos círculos elegantes todos os outros vinhos não passavam de vinhaça. A raridade dos espumantes os tornou tão cobiçados quanto caros, e o novo vinho logo se transformou em símbolo de um estilo de vida rico e luxuoso na Inglaterra e na França. O perfeccionismo pregado pelo monge Pérignon dera ao mundo seu primeiro vinho de qualidade inequívoca e irresistível.

 

Foi mais ou menos nessa mesma época, e também devido ao aprimoramento das garrafas de vidro e das rolhas, que surgiu um outro estilo de vinho inteiramente diferente. Nascia o Porto. E, assim como o champagne, ele fez um enorme sucesso.

 

Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.

 

Por Danúbia Otobelli
Foto: Arquivo Editora Novo Ciclo