História do Vinho – Parte XXXIV

Sangue, suor e vinho

História do Vinho – Parte XXXIVA Segunda Guerra Mundial era mais um golpe para os produtores de vinho e o término de qualquer fio de esperança que ainda tinham para recuperar seus vinhedos. O conflito foi a culminação de décadas de problemas que se abateram sobre a indústria vinícola do mundo ocidental. Do final do século XIX até a metade do século XX, o vinho foi ameaçado por doenças, Lei Seca, barreiras tarifárias, depressão econômica, guerras internacionais e condições políticas que devastaram a produção e o comércio. Os bons tempos de crescimento e lucro tinham virado história.

 

Em 1939, às vésperas do início da Guerra – que durou até 1945 -, a safra tinha sido péssima para os vinhos franceses. Para completar a angústia, a Alemanha nazista ganhava força e ameaçava invadir a França. Após a anexação da Áustria e a invasão da Tchecoslováquia esse temor ganhou ainda mais intensidade. Finalmente, com a invasão alemã na Polônia, França e Inglaterra decidiram entrar na guerra. Durante algum tempo, os produtores de vinho voltaram suas atenções para suas videiras e esqueceram um pouco a iminente ameaça nazista. Porém, em abril de 1940, as tropas alemãs invadiram a França. Ao se darem conta do que se passava, já era tarde demais para os vinicultores salvarem “seu tesouro”.

 

Conforme o livro Vinho & Guerra – Os franceses, os nazistas e a batalha pelo maior tesouro da França, de Don e Petie Kladstrup, o exército do Terceiro Reich não teve dó de saquear tudo o que via pela frente. Entre os principais produtos, o vinho era um dos destaques. Desesperados, os chefes das famílias buscavam uma forma de não perder seus melhores vinhos, ainda mais para os alemães. Na Borgonha, produtores guardaram suas melhores garrafas, entre eles os Romanée-Conti das safras 1929 a 1938 atrás de uma parede falsa em suas caves subterrâneas. Em outras regiões, os vinicultores escondiam do jeito que dava seus melhores vinhos, construíam muros em poucas horas e os forravam com teias de aranha para esconder as melhores bebidas; sabotavam os trens que transportavam o vinho para a Alemanha; ou ainda enganavam os alemães, conhecidos como ‘bebedores de cerveja’, trocando os rótulos por marcas famosas e servindo-lhes um vinho de péssima qualidade. Grande parte das safras de champagne safou-se por causa dessas artimanhas. Isso garantiu aos franceses salvar milhões de litros de vinho dos nazistas. “Tiros foram disparados. Houve roubos, confiscos e abusos. Também ocorreram trapaças, traições e golpes de todos os tipos. Colaboração versus resistência. Pessoas morreram. Outras passaram anos na prisão. Aproveitadores enriqueceram. Muita gente se arruinou. Tudo em nome da “jóia mais preciosa da França”, escreveram Kladstrup.

 

Tempos de guerra
Apesar do esforço francês, a grande maioria dos vinhos foi saqueada pelos alemães. Para piorar, as vinícolas foram invadidas e serviram de abrigo para as tropas nazistas. O Château Haut-Brion foi usado como hospital militar francês e como casa de repouso das tropas. Os funcionários que trabalham nas casas foram enviados para a guerra e para os campos de concentração, assim como muitos vinicultores. Os cavalos que preparavam os campos foram servir o exército alemão. A produção dos vinhos praticamente parou nos momentos de guerra e, cada vez mais, a pilhagem desenfreada prejudicava os cidadãos franceses.

 

O vinho saqueado servia para acalentar os soldados. Os alemães distribuíam uma cota diária da bebida a seu exército e tinha por objetivo dar ânimo e aproximar os soldados de casa.
Tão logo os alemães começaram a desconfiar dos truques franceses, contrataram homens que intermediavam as negociações entre os vinicultores e os alemães que quisessem comprar os vinhos. Os weinführers, como eram chamados, facilitavam as compras e evitavam que os próprios soldados saqueassem a bebida. Estimativas apontam que cerca de 320 milhões de garrafas foram expedidas por ano para a Alemanha com a ajuda dos weinführers.

 

Com o passar do tempo, o sofrimento dos franceses aumentava. A escassez de comida e conforto revoltava a população. O exército de Resistência ganhava cada vez mais força e adesão da população cansada da ocupação alemã. Os vinicultores, em seus campos de concentração ou lutando na guerra, só pensavam em uma coisa: seus vinhos. O que lhes dava força para suportar o horror da guerra era pensar em seus vinhedos e sua produção.
As esperanças voltaram a crescer com as notícias de que as tropas americanas entrariam na guerra e libertariam a França da ocupação nazista. A invasão dos Aliados na Normandia, em 1943, voltou a levar sorrisos aos rostos franceses.

 

Mas ainda faltava uma coisa para os franceses, que era recuperar o seu maior tesouro roubado: os vinhos. A busca das tropas aliadas pelo ‘Ninho da Águia’, a residência de Adolf Hitler em Berghof, nos Alpes Bávaros, levou os franceses a encontrarem um tesouro inestimável: quadros, esculturas e os grandes rótulos franceses que haviam sido confiscados. Na cave estavam meio milhão de garrafas dos mais excelentes vinhos fabricados em Bordeaux, Borgonha e Champagne. A adega no meio da pedra foi o destino de anos de confisco da bebida-símbolo da França durante a ocupação nazista.

Apesar de abstêmico e pregar que o consumo excessivo de bebida alcoólica era imoral, Adolf Hitler confiscou e guardou inúmeras garrafas de vinhos franceses.

Apesar de abstêmico e pregar que o consumo excessivo de bebida alcoólica era imoral, Adolf Hitler confiscou e guardou inúmeras garrafas de vinhos franceses.

Novos horizontes
Os vinicultores que, sofreram com guerra, voltaram para casa e para seus vinhedos. E como costumavam afirmar: “Deus manda uma safra ruim quando a guerra começa e uma excelente para marcar seu fim”. Foi exatamente o que ocorreu em 1939 e 1945. A safra do final da guerra – devido as inovações tecnológicas que surgiram – foi a última grande safra do século XX.
Outro importante acontecimento na França entre as duas guerras foi o surgimento de uma série de leis que mais tarde levariam à regulamentação AOC (Appellation d’Origine Contrôlée) que define a região, o tipo de uva e outras características de metade dos vinhos que hoje são produzidos no país. Durante a Segunda Guerra Mundial os trabalhos foram completamente interrompidos e retornaram após o conflito.

 

A guerra, é claro, interrompeu o comércio vinícola não só dentro da Europa, mas também no resto do mundo. A Austrália, por exemplo, exportava cerca de 16 milhões de litros de vinho e de 1940 a 1941 as exportações caíram para 7,5 milhões e, em 1943, para metade disso.
Depois de tantas adversidades e cinquenta anos de crise, a recuperação da indústria vinícola foi, na medida do possível, rápida. Na década de 1950 o vinho se via diante de um ambiente bem mais favorável e algumas décadas depois em plena prosperidade. Chegara a vez dos americanos – que após anos de Lei Seca e ‘esquecimento vinícola’ – mostraram o potencial da Califórnia.

 

Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Vinho & Guerra – Os franceses, os nazistas e a batalha pelo maior tesouro da frança, de Don e Petie Kladstrup; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; e História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.

 

História do Vinho – Parte XXXIV2

Soldados festejam com vinho.

Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação