História do Vinho – Parte XXXVI

 O desafio de uma nova região vinícola

Vinhedos nos vales australianos.

Vinhedos nos vales australianos.

O Novo Mundo estava a pleno vapor. Muito além da Califórnia, uma nova região vinícola começava a se estabelecer ainda mais distante da Europa. Em 1788, o capitão Arthur Phillip, o primeiro governador da colônia britânica de New South Wales – que viria a se tornar anos mais tarde a Austrália -, escreveu para seus superiores em Londres: “Em um clima tão apropriado, o cultivo de uvas deve, sem dúvida, acontecer com perfeição. Sem nenhuma outra mercadoria desviar a atenção dos colonos deste lugar, o vinho de New South Wales poderá em pouco tempo se tornar um item de luxo indispensável nas mesas europeias”. Dois séculos depois as previsões do capitão Phillip se concretizaram. A Austrália é hoje o quarto maior exportador de vinhos do mundo e seu Shiraz considerado o melhor do planeta. Entretanto, se hoje esses títulos são ostentados, o caminho para eles não foi fácil. Produzir vinhos na terra dos cangurus foi mais difícil do que se imaginava.

 

As primeiras videiras levadas pelos navios britânicos chegaram em 1788 e, em poucos dias, as mudas foram plantadas nas terras que hoje equivalem ao centro de Sydney. No entanto, o clima de verão era úmido e quente demais. Um segundo vinhedo foi plantado mais a oeste. Em 1790, o capitão Phillip relatou ter duas mil videiras plantadas, mas uma safra modesta, pois, por descuido, os cachos apodreceram nos pés. A safra seguinte foi mais abundante, mas ainda assim inadequada para a produção de vinhos. Foi só em 1795, que foram produzidos vinhos no país. A safra foi de 400 litros da bebida com uvas cultivadas em menos de um décimo de hectare. A bebida foi descrita como sendo “toleravelmente boa”.

 

Embora estivesse produzido vinho, a Austrália não tinha mercado. Suas primeiras colônias foram povoadas por camponeses britânicos que não estavam acostumados a beber vinho. Preferiam aguardente. Os poucos imigrantes que bebericavam vinho podiam ser abastecidos com bebidas de outros países. Nas primeiras décadas do século XIX, o rum era a bebida preferida e seu consumo tão grande que logo se tornou moeda de troca. Sem um mercado viável, a vinicultura da Austrália fracassou e só voltou a crescer no século XIX, quando se enraizou.

 

Renascimento
No ano de 1820, a vinicultura australiana deu sinais de renascimento com a chegada do escocês James Busby, um amante de vinhos – considerado o pai da viticultura australiana – que percorreu metade da França para conhecer seus vinhedos e resolveu plantar videiras em New South Wales. Não há registros se ele chegou a produzir vinhos, mas ninguém trabalhou mais que ele para desenvolver a viticultura na jovem colônia. Em 1831, Busby voltou à Europa e retornou a Austrália com 362 varietais, que foram plantadas no jardim botânico de Sydney.
Anos mais tarde, numa ação prática, levou 10 galões de vinho australiano para a Inglaterra, metade em pequenos barris e metade em garrafas. O vinho engarrafado chegou estragado, entretanto o que estava em barril permaneceu intacto. Para qualquer vinicultor australiano, que sonhava em fornecer vinho para o mercado europeu, foi uma notícia maravilhosa saber que o vinho feito na colônia era capaz de viajar o mundo sem perder qualidade.

 

Busby ajudou a estabelecer as bases da viticultura em New South Whales e, na década de 1830, vários vinhedos haviam sido plantados em torno de Sydney e em Hunter Valley. A viticultura logo se fixou como uma cultura agrícola e, em 1850, havia mais de mil acres de vinhedos. Mesmo assim, ainda era uma indústria marginal comercialmente. O vinho era caro em relação às outras bebidas. Rum, gim, conhaque e cerveja faziam muito mais sucesso.
Foi em meio a esse cenário que os fabricantes resolveram divulgar seus vinhos na Europa – visto que a aprovação dos especialistas europeus era o objetivo principal – e participar de exposições agrícolas e industriais. Se em Londres eles não conseguiram expor, em Paris tiveram mais sucesso. Na exposição de Viena, em 1873, os jurados franceses, durante uma degustação às cegas, elogiaram os vinhos australianos. Mas, como ocorreu no Julgamento de Paris um século depois, eles retiraram os elogios após descobrirem a origem da bebida, afirmando que os vinhos daquela qualidade só podiam ser franceses. Mesmo assim, os vinhos australianos continuaram ganhando elogios e prêmios em competições francesas.
Com isso, na segunda metade do século, a produção vinícola australiana ganhou as alturas. Passou, em poucos anos, de 6.825 mil litros para 275 mil litros, em 1880. Neste mesmo ano, havia cerca de 100 vinícolas no país.

 

Qualificação
A indústria e a cultura vinícolas da Austrália também começaram a amadurecer. Uma associação de viticultores de Hunter River foi formada, as técnicas de fabricação do vinho evoluíram e chegou-se a um consenso de que as uvas Syrah e Semillon eram as mais adequadas à região. O sucesso da indústria vinícola australiana dependia, é claro, de mercado. A maior parte da produção de Hunter Valley foi vendida localmente, mas na década de 1860 foram feitas tentativas de vendê-la no vasto mercado de Sydney. Foi a disseminação do hábito de beber vinho nas áreas urbanas que permitiu que a região vinícola se desenvolvesse tão rapidamente. Em 1895, cerca de 4 milhões de litros de vinhos foram produzidos na colônia e a maior parte consumida lá mesmo.

 

Na virada do século, os vinhedos australianos estavam produzindo 12 milhões de litros de vinho por ano e a indústria parecia estar a todo vapor. Em 1901, no entanto, quando os estados se juntaram numa federação para formar a Austrália moderna, as barreiras tarifárias entre eles foram eliminadas e muitas vinícolas acabaram sendo fechadas. Aliado a isso, o século XX havia trazido a filoxera e, mesmo distante da Europa, a Primeira Guerra Mundial atingiu a produção de vinhos australianos. O número de produtores de vinhos caiu de 70 em 1913 para 35 dois anos depois. E como ocorreu no resto do mundo, os movimentos contra o consumo de bebidas alcoólicas e a Segunda Guerra Mundial só interromperam o processo vinícola. Por volta de 1941, a Austrália exportava 16 milhões de litros de vinho para a Inglaterra, enquanto que em 1943 essas exportações caíram para 7,5 milhões.

 

Imediatamente após o término do conflito, a ênfase na qualidade provocou uma reorganização da indústria vinícola no Novo Mundo. O poder se concentrou na mão de algumas grandes empresas e a extensão geográfica da produção se alterou, movendo-se mais para o sul. O país também abandonou as referências das regiões, que eram pregadas pelo Appellation. Passou a descrever seus vinhos pelo tipo de uva com o qual ele é feito: no Hunter Valley na Austrália foi a Syrah e no Marlborough na Nova Zelândia a Sauvignon Blanc.

 

A Austrália também realizou movimentos transnacionais. Nos anos de 1990, a BRL Hardy, um dos maiores conglomerados vinícolas, comprou vinhedos em Chianti e no Languedoc. O primeiro não foi bem sucedido e acabou abandonado, mas o último floresceu na propriedade La Baume e produz anualmente milhões de vinhos tintos e brancos. A vinícola Hardy na França é resultado de uma influência maior que a Austrália passou a ter no mundo do vinho nos últimos anos. Embora seja responsável por apenas 2% da produção mundial seus resultados têm sido notáveis e se tornaram referência para uma série de uvas, como Chardonnay e Syrah. Além disso, os australianos inovaram no manejo dos parreirais, na colheita noturna e em outras técnicas de viticultura.

 

Se o Novo Mundo revelava todo o potencial para o desenvolvimento de grandes regiões vinícolas, afinal Chile, Argentina, Austrália e os Estados Unidos prosperavam sem precedentes, a Europa precisava mostrar que ainda estava na ativa. Chegara a hora da reação do Velho Mundo.

 

Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; e História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.

 

Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação