“Tomou depois o cálice, rendeu graças e o deu aos seus discípulos, dizendo: ‘Bebei dele todos, porque isto é meu sangue, o sangue da Nova Aliança, derramado por muitos homens, em remissão dos pecados’”. Essa – no caso, na ‘versão’ do evangelista Mateus (26, 27-28) – talvez seja a passagem bíblica mais famosa, e demonstra bem como o vinho se tornou uma bebida muito importante e significativa para os cristãos. Mas como isso aconteceu?
Nunca foi fácil entender o simbolismo do sacrifício no cristianismo. Ele se desenvolveu no contexto da tradição grega, e não da judaica. Na Grécia pagã, constituía um ato sagrado queimar a carne no altar para alimentar os deuses e depois comê-la. Podemos dizer que se tratava de uma refeição tomada em comum com a divindade. Um ato igualmente sagrado, que remonta a milhares de anos, consistia em beber sangue, sangue misturado com vinho ou vinho simbolizando sangue. A palavra grega eucharistia designava tais cerimônias quando estas eram especificamente ações de graças formais. Assim, a palavra utilizada pelos cristãos para denominar seu ato de adoração relacionava-o diretamente aos sacrifícios pagãos.
Tão logo entraram em contato com o pensamento grego, os ensinamentos de Cristo assumiram um significado inaceitável para os judeus. Em seu simbolismo ou no simbolismo que a Igreja lhe atribuía, o sacrifício de Cristo estava próximo demais dos velhos ritos pagãos. Os devotos de Baco afirmavam que comiam a carne de seu deus e bebiam-lhe o sangue. Os cristãos começaram a fazer a mesma coisa. Eles misturavam a água e o vinho de um modo que lembrava certos rituais. Mais tarde, os padres apresentaram diferentes interpretações místicas: Santo Irineu afirmou que o gesto simbolizava a união das naturezas terrena e celeste de Cristo; São Cipriano explicou que representava a união dos fiéis com Jesus, sendo esta a que prevaleceu. Pinturas das primeiras celebrações mostrando o uso do vinho durante a eucaristia foram encontradas nos murais das catacumbas, locais onde os cristãos se escondiam devido à perseguição.
Aliás, nas diversas culturas, o vinho e a uva são tidos como elementos sagrados. Para os seguidores de Moisés, a primeira visão da terra prometida foi um prodigioso cacho de uvas. Para os judeus, não existia vida comunitária, religiosa ou familiar sem vinho. Para os gregos, o vinho proporcionava libertação e êxtase. A embriaguez era considerada sagrada. No cristianismo, o primeiro milagre de Jesus, em Canaã/Caná, consistiu em resolver o problema da falta de vinho num banquete nupcial. Ele ordenou aos criados que enchessem seis talhas com água do poço. Quando serviram o conteúdo delas, era vinho – e melhor que o fornecido pelo noivo.
No século II, os cristãos da Ásia Menor conseguiram erguer suas primeiras igrejas. No ano de 313, quando o imperador Constantino se converteu ao cristianismo, a eucaristia tornou-se a liturgia que permanece até os dias de hoje. São Tomás de Aquino resume com precisão o significado do vinho na missa: “O sacramento da eucaristia só pode celebrar-se com vinho da videira, pois esta a vontade de Cristo Jesus, que escolheu o vinho quando ordenou tal sacramento (…) e também porque o vinho de uva constitui de certo modo uma imagem do efeito do sacramento. Refiro-me à alegria espiritual, pois está escrito que o vinho alegra o coração do homem”.
Santo vinho
Nos primeiros séculos da era Cristã, a produção de vinhos já havia se espalhado por quase toda a Europa. O vinho também já tinha alcançado uma importante posição cultural, com lugar privilegiado na doutrina e nos rituais cristãos. A adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano serviu para consolidar o status da bebida. As associações religiosas tiveram um claro impacto na postura dos laicos em relação ao vinho, mas não se deve superestimar o papel da religião na disseminação e na popularidade da bebida. O vinho simbolizava o sangue de Cristo, mas também era um produto comercialmente rentável. Além do mais, o vinho tinha conotações espirituais que lhe conferiam uma condição cultural particular e era também uma bebida agradável, que proporcionava uma sensação de bemestar e contribuía para facilitar a interação das pessoas em ocasiões especiais.
As invasões da Europa Ocidental pelas tribos germânicas, a partir do século V, mudaram a feição da vitivinicultura. Os bárbaros, sedentos por vinho, careciam da disciplina e paciência necessárias para produzi-lo. Diante de tal quadro, o que será do vinho na Idade Média?
Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.
Por Danúbia Otobelli
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