Tabernas eram o ponto de encontro para a ingestão de álcool, mesmo sob pena de punições.
Tabernas eram o ponto de encontro para a ingestão de álcool, mesmo sob pena de punições.

No decorrer da Idade Média, a Europa, que estava ‘sedada’ por apenas um tipo de bebida, no caso, o vinho, passou a poder escolher entre uma gama de bebidas regadas a álcool. As convicções políticas e religiosas da época não encorajavam o consumo de vinho. Tampouco incentivavam os produtores a aprimorar a qualidade ou ampliar a variedade. Os desastres, como a Peste Negra, a Guerra dos Trinta Anos, as lutas na região francesa, a expansão do movimento puritano, os impostos e as leis que restringiam o comércio só vinham a contribuir. Logo, o vinho se deparou com uma sucessão de novos e formidáveis rivais, um após o outro, roubando a cena como a bebida social do momento. Nascia a chamada ‘revolução do álcool’. No entanto, esse fenômeno caminhou a passos lentos, por vários fatores. O primeiro deles era que montar uma destilaria custava caro, e não eram todos que podiam; o segundo, a Reforma Protestante, que atingia toda a Europa. Entretanto, aos poucos, o álcool emergiu como um importante produto econômico. Mas comecemos do princípio…

 

Reforma
A Reforma Protestante (movimento reformista cristão iniciado no século XVI, por Martinho Lutero, contra diversos pontos da doutrina imposta pela Igreja Católica) dividiu a Europa e resultou na criação de nova igrejas. Estava selada a divisão da chamada Igreja do Ocidente, entre os católicos romanos e os reformados, originando o Protestantismo. Essa ruptura na ordem religiosa europeia e a existência de Estados com religiões divergentes tiveram implicações na história do vinho. Os protestantes fizeram aumentar a demanda pela bebida. Eles alegavam que os cristãos deveriam receber tanto o pão quanto o vinho, e não apenas o pão, conforme acontecia na comunhão católica. O teólogo francês Calvino escreveu que, ao privar os leigos do vinho, a Igreja Católica “roubou ou tirou a bebida da maior parte do povo de Deus… e deu um bem especial a uns poucos padres”. Porém, esse tiro acabou saindo pela culatra e os fiéis ficaram contentes (até demais) com as novas orientações. Na primeira comunhão presbiteriana realizada na Escócia, a congregação recebeu tanto vinho que ele teve de ser levado em barril à Igreja. O volume da bebida consumido nas cerimônias religiosas daquela época sugere que “as pessoas não molhavam apenas os lábios com vinho… Elas tomavam um grande gole e se revigoravam…”.
Foi a partir disso que calvinistas e outros protestantes começaram a ter excessiva preocupação diante das bebidas alcoólicas. O álcool havia se tornado um vilão, posição essa que não se distanciava da adotada pela Igreja Católica, que enfatizava constantemente o perigo e o pecado contidos no hábito de beber demais. A partir da Reforma, passaram a existir diferenças bem marcadas entre as relações das diferentes igrejas com o vinho e com as demais bebidas alcoólicas. Foram criados movimentos antiálcool, muitos dos quais incentivados pela Igreja Católica, que passou a restringir aos padres o vinho da comunhão.

 

Proibição
Na primeira metade do século XV, Calvino começou a fazer pregações e a proibir não apenas a bebedeira, mas também que uma pessoa convidasse outra para um drinque. Mais do que um gesto em prol da moderação, as medidas eram também um desprezo aos conceitos de que o vinho era sociabilidade e confraternização. Para Calvino, o vinho devia ser consumido em quantidades pequenas, como parte da alimentação diária ou como remédio – nunca por prazer.
O clero protestante era proibido de beber demais e a cúpula da igreja decretou leis que puniam quem ficasse embriagado. Os regulamentos escritos por Calvino, em 1547, para as igrejas nas zonas rurais diziam que “está proibido convidar outra pessoa para beber, sob pena de multa”. E não eram meras ameaças. Na comunidade calvinista holandesa de Emden, na segunda metade do século XVI, as condenações por embriaguez representaram mais de um quarto de todas as punições por violação da ordem pública. Condenavam-se os excessos do álcool como os responsáveis por males do corpo, da alma e da sociedade. O vinho, diziam, lançava fumaça e vapores no cérebro e brutalizava o espírito.

 

Destilação
Foi nesse clima que a Europa assistiu ao progresso da destilação. Novas bebidas alcoólicas surgiram e o comércio do vinho começou a ter um importante impacto, com o nascer de bebidas como a cerveja, o conhaque, o gim… “Descobriu-se” que o vinho não era a única substância que podia ser destilada, e, a partir do século XVII, os cereais foram submetidos ao mesmo processo, para a fabricação de uísque, vodca e gim. Pela primeira vez, regiões nórdicas, que não conseguiam cultivar uvas, puderam fabricar suas próprias bebidas alcoólicas, e mais fortes que a cerveja. Como eram feitas de cereais – principal produto alimentar da época e que germinava onde quer que fosse plantado –, essas bebidas custavam pouco, o que ocasionou um marco na história do álcool, se não do vinho.

 

O advento dessas bebidas mais baratas (e, consequentemente, mais acessíveis a todas as camadas sociais), especialmente o conhaque, fez aumentar o consumo de álcool (para desespero da Igreja) em toda a Europa. Em 1675, cerca de 4,5 milhões de litros de conhaque francês foram exportados para a Inglaterra e, em 1689, esse volume dobrou. Rapidamente, o conhaque reduziu os lucros dos produtores de vinho, já que possuía muitas vantagens comerciais. Primeiro, que o processo de destilação do vinho faz aumentar o teor alcoólico. Eram necessárias quatro ou cinco unidades de vinho para se fazer uma de conhaque, mas ele tinha cerca de oito vezes mais álcool por unidade do que o vinho. Havia também vantagens no transporte, pois o custo para o conhaque era muito menor, por unidade de álcool, do que o de vinho. E, para os consumidores, o conhaque aquecia muito mais do que o vinho e a cerveja – talvez seja por isso que tenha feito sucesso nos países do Norte. A Europa logo estava ocupada em ‘queimar’ seu excedente de vinho, o tal brandy (conhaque, em inglês, que vem da palavra holandesa brandewijn, ou seja ‘vinho queimado’).

 

Com o tempo, outras bebidas ganharam popularidade. No século XVIII, o gim começou a ser tão amplamente consumido na Inglaterra que foi considerado uma ameaça à ordem social, assim como o uísque, a vodca e o rum o foram em outros lugares, em tempos mais recentes.

 

Porém, a verdadeira indústria e comércio dos destilados teve de esperar até que os holandeses entrassem em cena. Foram eles que descobriram, no século XVII, o mercado comprador de vinho destilado ou de cereais fermentados. E foi dessa forma que os holandeses se tornaram ‘carreteiros do mar’ e florescentes do comércio vinícola.

 

FONTES: A HISTÓRIA DO VINHO, DE HUGH JOHNSON; UMA BREVE HISTÓRIA DO VINHO, DE ROD PHILLIPS; HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO, DE JEAN-LOUIS FLANDRIN E MASSIMO MONTANARI.

 

Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação

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