A consolidação dos vinhos brasileiros
Se o ditado popular ‘Depois da tempestade vem a calmaria’ estiver certo, a vitivinicultura brasileira é a comprovação. Após muitos anos de vinhos ruins, brigas no setor, crise mundial e cooperativas decretando falência, a vitivinicultura nacional começou a desenrolar uma transição que mudaria as técnicas, a produção e a qualidade do vinho brasileiro. Estava anunciada uma fase promissora que consolidaria a produção vinícola brasileira. Esse desenrolar ocorreu quase um século depois das primeiras vinhas plantadas na Serra Gaúcha, mais precisamente na década de 1970. Porém, antes disso algumas atitudes já vinham sendo tomadas para a modernização.
Na década de 1950, ocorreu um fato inusitado. A Georges Aubert, produtora francesa dos espumantes Clairette de Die, Vin Mousseux Naturel, AOC’s Aurel e Saillams, com mais de 75 anos de tradição, enfrentava problemas políticos após o encerramento da Segunda Guerra Mundial e tinha planos de deixar a França. Os primos Renè e Georges Aubert tiveram contato com Irmão Otão, marista de Garibaldi, que estava na França pesquisando o mundo vinícola. O religioso passou informações sobre as potencialidades da cidade de Garibaldi. Era tudo o que eles queriam ouvir. No mesmo ano, a George Aubert simplesmente arrumou as malas e mudou-se para o Brasil. Em 1953 foi iniciada a construção do parque industrial. Em 1956 a empresa trabalhava a pleno vapor. A vinda da Georges Aubert deu abertura a uma série de multinacionais que se instalariam décadas depois em solo brasileiro. Nos anos 1970 vieram a Moet & Chandon, a Martini & Rossi, a Maison Forestier, a Domecq e a Almadén, que trouxeram na bagagem equipamentos de alta tecnologia e técnicas viticulturais modernas.
Com as multinacionais, iniciou-se uma preocupação com o plantio de variedades viníferas. Em 1968, desembarcou no Rio Grande do Sul o uruguaio Juan Carral Pujol, que fundou uma vinícola em Ana Rech, na cidade de Caxias do Sul. Com uma proposta bastante ousada à época, a vinícola tinha a forma de um castelo medieval e incentivava os produtores a plantarem Vitis viniferas, pagando inclusive um preço maior pela variedade.
Os primeiros passos estavam dados e nos anos seguintes iniciou-se a produção de material vegetativo livre de vírus pela Embrapa Uva e Vinho. Os estudos em vitivinicultura na Faculdade de Agronomia e no Instituto de Ciência e Tecnologia de Alimentos da UFRGS também foram retomados. Embora o consumo da bebida fosse pequeno, foram nessas décadas que chegou ao brasileiro a importação de vinhos europeus. Os famosos ‘Rieslings de garrafa azul’ e de baixo custo – e dizem de péssima qualidade – caíram no gosto popular e abasteciam os lares brasileiros. O tempo e a apuração do paladar fez com que o brasileiro passasse a exigir produtos melhores, e isso resultou num maior cuidado com produção nacional de vinhos.
Safra da virada
Mas foi somente a partir dos anos de 1990 que o salto de qualidade começou de fato. Houve uma crescente profissionalização e adaptação das uvas finas ao clima da Serra Gaúcha. As novas gerações de produtores nacionais estavam comprometidas com a busca da qualidade e dotadas de modernas instalações para elaborar vinhos. A abertura da economia nacional fez o consumidor se interessar mais por vinhos, inclusive o nacional. Os meios de comunicação valorizavam os fermentados de uva. O Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) era implantado para organizar as áreas vitivinícolas. Foi neste contexto cultural e econômico que surgiu, em 1999, o que ficou conhecida como ‘A safra da virada’. A colheita daquele ano – que foi favorecida pelo fenômeno La Niña – mostrou que o Brasil também podia elaborar vinhos de qualidade e deu uma visibilidade sem precedentes, tirando da sombra o movimento até então silencioso de renovação e modernização que vinha sendo ensaiado alguns anos. Da ‘Safra da virada’ algumas vinícolas como Pizzato, Angheben, Dal Pizzol, Salton e Miolo se destacaram com a introdução de vinhos longevos que durariam até a década seguinte. No Rio Grande do Sul foram colhidas quase 59 mil toneladas de uvas Vitis viniferas, cerca de 20% a mais do que no ano anterior. Em 1980, a produtividade da videira no país era de 7.776 kg por hectare e em 1999, chegou a 15.318 kg por hectare.
Paulatinamente, o vinho brasileiro incorporou melhorias e começou a ganhar mercado. Os espumantes nacionais se destacaram nas competições internacionais e Bento Gonçalves ganhou a primeira Indicação Geográfica (Vale dos Vinhedos) do país. Da mesma maneira, surgem as instituições de enófilos e profissionais ligados ao ramo, como a Sociedade Brasileira do Vinho, a Associação Brasileira de Somelliers e diversas confrarias, que fazem com que o tema vinho esteja na mesa brasileira.
As regiões
Desde seu início até a década de 1960, a viticultura brasileira ficou restrita às regiões Sul e Sudeste, mantendo as características de cultura de clima temperado com ciclos vegetativos anuais. A partir do cultivo da uva Itália foi levada para a região semi-árida do Vale do São Francisco, marcando o início da viticultura tropical no país na década de 1970. Atualmente, a viticultura ocupa uma área de 77 mil hectares, com vinhedos estabelecidos desde o extremo sul até regiões próximas ao Equador. São regiões vinícolas o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. Entretanto, o solo gaúcho continua respondendo pelo maior percentual, com 90% de área cultivada.
Em função da diversidade ambiental, existem polos vitícolas com características de regiões temperadas, com período de repouso hibernal; polos em áreas subtropicais, onde a videira é cultivada com dois ciclos anuais; e polos de viticultura tropical, onde ocorrem até três ciclos vegetativos. A produção de uvas é de 1,2 milhões de toneladas ao ano. Segundo o Instituto Brasileiro do Vinho, em 2011 a produção de vinhos no Estado foi de 461 milhões de litros. Do total de produtos industrializados, 77% são vinhos de mesa, 13% vinhos finos elaborados com castas de Vitis viniferas e 9% de sucos de uvas. Embora a proporção de vinhos finos seja pequena em relação a outros países, a qualidade da bebida vem melhorando de forma consistente nos últimos anos. O mundo tem descoberto o vinho brasileiro – atualmente a bebida é exportada para 22 países. Os espumantes são os que mais recebem elogios.
Enfim, o vinho brasileiro é ainda jovem na história da tradição vinícola mundial, mas está construindo uma bela trajetória para ser contada. História vinícola essa que chega ao fim neste capítulo. Ao longo de 40 edições, A Vindima publicou a trajetória da bebida pelo mundo, dos antigos egípcios, passando por Bordeaux, dando um pulinho na Austrália e finalizando na América e no Brasil. A cada dia um novo capítulo é escrito e mostra que o futuro do vinho é tão fascinante quanto o seu passado.
Fontes: revista ‘Bon Vivant’; ‘Degustação de Vinhos’, de Vitor Manfroi; ‘Viticultura Brasileira’, de Julio Inglez de Sousa e Fernando Picarelli Martins; e Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin).
Por Danúbia Otobelli
Foto: Gilmar Gomes/Divulgação