História do Vinho – Parte XVII

A cada dia o mundo se abria para uma nova ‘descoberta’ vinícola.

Região de Tokaj-Hegyalja, na Hungria.
Região de Tokaj-Hegyalja, na Hungria.

A cada dia o mundo se abria para uma nova ‘descoberta’ vinícola. O final da Idade Média e início da Moderna brindava os cidadãos com mais um tipo de vinho. A época já havia dado o efervescente Champagne, o esplêndido clarete e o ‘principiante’ Porto. Chegara a vez da extremidade oposta da Europa promover um vinho não menos novo e tampouco menos nobre: era o Tokay, o vinho doce da Hungria. Como visto no capítulo anterior, Inglaterra e França estavam em guerra, o que obrigava os ingleses a procurar vinhos fora dos limites franceses. Foi justamente isso que beneficiou os vinhos portugueses e também promoveu o Tokay, proveniente da região de Tokaj-Hegyalja.

 

O Leste europeu esteve ausente de nossa história do vinho ao longo dos séculos, surgindo apenas em determinados momentos. Porém, esse silêncio não significava que a vitivinicultura não existisse. Desde que os gregos introduziram a videira no vale do Danúbio, nunca faltou vinho na região. Nem mesmo a invasão de Átila com seus hunos, nem os ávaros que os sucederam (derrotados por Carlos Magno), nem os magiares, que fundaram a nação húngara, tinham motivo para destruir os vinhedos. A lenda conta que Carlos Magno, entusiasmado com o vinho dos ávaros, havia levado até algumas videiras para a Alemanha. Outra história relata que, no século XIII, o rei Bela convidou alguns italianos a se instalarem na região, onde plantaram sua videira favorita, denominada de Furmit, a qual, juntamente com a Hárslevelü e com a Muscat, compõe o moderno Tokay.
O vinho produzido nesse local, fosse qual fosse, estava acima da média.

 

História do Vinho – Parte XVII 1Entretanto, somente adquiriu importância com a invasão turca, quando se tornou uma das fontes de renda dos húngaros. No século XVI, os húngaros tentaram convencer os poloneses a comprarem seu vinho, mas esses alegaram que só fariam negócio se os húngaros levassem o produto para a Polônia. Porém, eles se negaram, temendo que seus soldados (que lutavam contra os turcos) acabassem passando sede. A reação dos poloneses foi comprar um vinho ‘verde’, denominado Cotnari, que rivalizava com o Tokay.

 

Em 1678, os turcos atacaram, defintivamente, a Hungria, devastando a região. Nessa época, os produtores de Tokaji-Hegyalja começaram a escavar na rocha vulcânica de suas colinas túneis estreitos que serviam como adegas. Junto às suas paredes enfileiravam seus pequenos barris. Como não estavam cheios até a borda, o vinho oxidava pouco a pouco, o que alterava sutilmente seu sabor. E foi esse vinho que os húngaros usaram como arma diplomática para salvar o país. Não adiantou: a Áustria e seus aliados (incluindo a Inglaterra) ganharam a guerra, e os Habsburgo impuseram seu domínio sobre os húngaros e sobre o Tokay. Eles apossaram-se dos melhores vinhedos, proibiram a venda a estrangeiros e transplantaram videiras para a Criméia, com o intuito de produzir seu próprio Tokay. O que não era mandado para Viena, Moscou, São Petersburgo, Varsóvia, Berlim ou Praga ia diretamente para a Holanda, França e Grã-Bretanha. Na época, não havia no mundo um vinho tão doce. O Porto ainda era considerado um vinho ‘cachaça e de baixa qualidade’, o que dava ao Tokay um status de ‘néctar deliciosamente perfumado’.

 

Podridão nobre

História do Vinho – Parte XVII 2

O Tokay era e ainda é um vinho único, no que se refere ao processo de elaboração e aos métodos que permitem determinar e medir sua doçura e sua intensidade. A matéria-prima apresenta uma peculiaridade: o ataque pela chamada podridão nobre. Conta a lenda que, para evitar um iminente ataque turco, um produtor adiou a vindima. Devido a isso, as uvas murcharam, amoleceram e ocorreu uma podridão, causada pelo fungo Botrytis cinerea. Parte das uvas afetadas pelo fungo foi esmagada separadamente e misturada ao mosto de uvas que não tinham sido infestadas. O vinho que resultou dessa experiência foi muito apreciado e mais delicioso do que se provara até então. Estava criado o Tokay.

 

A raridade e extrema doçura o tornaram um luxo legendário. Os czares acreditavam que tal elixir restaurava todo tipo de força vital. Há histórias de aristocratas e religiosos que se levantavam da cama – ou nela se lançavam cheios de vigor – após uma gota desse néctar. Há ainda casos de octagenários que tiveram vasta prole.

 

Sendo uma mistura de vinho com suco de uvas atacadas por Botrytis, o Tokay não era um vinho verdadeiramente novo, já que misturar ou acrescer alguma substância ao vinho era comum. Isso não era nem feito pelos vinicultores, mas pelos comerciantes, cuja maior preocupação era fazer com que a bebida sobrevivesse ao transporte em longas viagens e chegasse ao seu destino com a aparência desejada pelos consumidores.

 

Atualmente, controla-se a riqueza do vinho por meio de fórmulas. Despeja-se num barril de suco normal determinado número de medidas do mosto das concentradas uvas Aszú. Disso, resulta um vinho muito doce e dotado de uma capacidade de envelhecimento praticamente ilimitada. Em safras muito boas, todas as uvas Aszú, colhidas tardiamente, apresentam a ‘podridão nobre’.
Enquanto o Tokay ascendia pela Europa e encantava a mais alta nobreza, uma região promissora, que havia decaído consideravelmente devido a inúmeros fatores, renascia, na França: era Bordeaux, que apresentava os seus primeiros vinhos de château, mais próximos dos bordeaux que conhecemos hoje.

 

Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.

 

Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação

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