Uma vez château, sempre château
A região francesa de Bordeaux alcançou fama e prestígio durante a Idade Média devido ao seu clarete. Um vinho vermelho-claro, era uma verdadeira febre entre os ingleses. Porém, devido a inúmeras brigas, disputas – brinca-se que a rivalidade entre as nações era tanta que qualquer coisa que irritasse um monarca era motivo para entrar em guerra – e surgimento de bons vinhos em outras locais, Bordeaux foi perdendo espaço. Durante muito tempo, a França voltou-se contra a Inglaterra, o que prejudicou consideravelmente a produção vinícola de Bordeaux, já que, como foi dito, eram os ingleses quem mais apreciava o clarete.
Todavia, como vimos ao longo de nossa história, a política condiciona o mercado e este condiciona a produção vinícola de qualquer lugar onde seja obrigado a abastecer-se. Se, com frequência, tem de submeter-se às circunstâncias políticas, o mercado também é capaz de ganhar novo impulso e recuperar-se com rapidez. Esse foi o caso de Bordeaux, que renasceu para a prosperidade.
Como aconteceu
No século XVII, desenvolveu-se um conhecimento enológico mais sistematizado. A população começou a se preocupar com a origem do vinho: o tipo de uva usado, seu processo de elaboração, se ele tinha recebido alguma substância e, principalmente, de onde provinha. Nesse sentido, os consumidores e produtores começaram a prestar mais atenção à existência de vinhos específicos, característicos de uma determinada região ou de uma propriedade. Foi nesse cenário, e também devido à concorrência representada por novas bebidas, que o chefe de uma poderosa família de Bordeaux, Arnaud de Pontac, teve uma ideia que seria considerada revolucionária. Em 1660, ele passou a comercializar o vinho que produzia com o próprio nome de sua propriedade, cobrando-o mais por causa da marca e vendendo diretamente aos londrinos, que compunham a clientela mais fiel e antiga de Bordeaux. Na verdade, entre os interesses da família estavam os vinhedos, especialmente um localizado onde hoje é a região de Graves e onde o avô de Pontac construíra um castelo chamado de Haut-Brion. Ele, enfim, inovou na estratégia de marketing… Ao vinho feito de uvas de seus vinhedos de Graves ele deu o nome de Haut-Brion e em relação ao restante dos vinhos que produzia, como em Médoc, adotou apenas o seu sobrenome, Pontac. Com a restauração da monarquia na Inglaterra em 1660, houve um afrouxamento nas regras estritas que prevaleceram durante a república puritana, e as bebidas alcoólicas tornaram-se mais acessíveis e mais consumidas. Além disso, o Haut-Brion e o Pontac, ambos os vinhos encorpados, coincidiram com o declínio do gosto inglês pelos claretes leves. A repercussão foi instantânea. Em 1663, um funcionário público inglês, famoso por seu diário, Samuel Pepys, tomou um Bordeaux e registrou: “Tomei um tipo de vinho francês chamado de Ho Bryan, que tem um sabor agradável e o mais especial que já experimentei”. Ele havia provado Haut-Brion, o primeiro vinho de Bordeaux vendido como o nome da propriedade que o produzia. Nascia assim o que se tornou conhecido como os vins de château, feitos até hoje.
Estratégia
Claro que a vindima de Pontac tinha algumas características especiais. Para que o vinho ganhasse em sabor e força eram rejeitadas as uvas mofadas e eliminados barris menos satisfatórios, além da utilização de vin de presse (vinho de prensa, escuro e tânico) para fortalecer e dar mais cor ao vinho. Embora com todas essas particularidades, a grande inovação de Pontac foi mesmo o seu método de comercialização. Ele fez de Haut-Brion e do Pontac os seus premier cru. Com as duas marcas e um perfeito senso de oportunidade, lançou-se ao mercado londrino. Os vinhos custavam entre oitenta e cem coroas, mas não inibiam o mercado. A propósito, o filósofo inglês John Locke, em 1677, escreveu: “Os vinhos de Bordeaux – Médoc ou Pontac – são os melhores e mais elegantes, e compensam seu alto custo”.
Com a semente lançada, outros proprietários franceses começaram a usar a estratégia. Pierre de Lestonnac reuniu pequenos terrenos em torno de Lamothe-Margaux, o futuro Château Margaux. Na mesma época, os Pontac adquiriram propriedades em St. Estèphe, Le Taillan e Bas-Médoc; Arnaud de Mullet tornou-se proprietário de Latour de St.-Mambert. Foi assim que um pequeno grupo de famílias criou e desenvolveu os conceitos de château bordolês e premier cru.
Reabertura
A brilhante iniciativa de Pontac parecia extremamente promissora. No entanto, quase se revelou prematura. Em 1679, um conflito de interesses levou o governo inglês a proibir a importação de vinhos franceses. Em 1682, Arnaud de Pontac faleceu e sua sucessão foi complicada, envolvendo processos legais. Em 1685, o mercado inglês reabriu, recebendo muito clarete, para logo em seguida fechar as portas novamente. Para piorar a situação, as vindimas de 1692 a 1695 foram desastrosas, de forma que quase nenhum vinho de château havia sido comercializado. A crise era tanta que o poeta Richard Ames escreveu a obra Em busca do clarete, relatando sua longa e inútil peregrinação pelas tabernas londrinas em busca do velho e bom Bordeaux. No lugar do clarete, as tabernas só ofereciam Porto ou Tokay.
Em 1697, os ingleses reabriaram as portas, mas cobravam sobre os vinhos franceses tarifas alfandegárias duas vezes maiores que as incidentes sobre similares espanhóis e portugueses. De certa maneira, os ingleses continuaram fiéis ao clarete, o que contribuiu para a bebida tornar-se um vinho de luxo e símbolo de status.
Nos últimos estágios da guerra, os proprietários do Médoc devem ter percebido que a paz lhes renderia fortuna. Por fim, o preço dos vinhos baixou, a produção prosperou e deu início aos vinhos de Médoc, que conhecemos hoje.
Por ironia do destino, enquanto os franceses preocupavam-se com as características de sua bebida (investimentos, boas uvas, cuidados na manutenção, atenção ao clima), um vinho surgia para conquistar seu lugar na história graças ao tratamento, digamos, ruim e brutal que recebeu. Surgia o vinho ‘masoquista’ da Madeira.
Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.
Por Danúbia Otobelli
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