História do Vinho – Parte XX

Borgonha estabelece um padrão

Uva Pinot Noir: terroir borgonhês.
Uva Pinot Noir: terroir borgonhês.

Em 1728, o padre Claude Arnoux escreveu La situation de la Bourgogne, no qual afirmou que os vinhos da Borgonha tinham “vapores doces”. São tomados “de duas maneiras: pelo nariz e pela boca, ao mesmo tempo ou separadamente”. O padre Arnoux referia-se ao aroma de hortelã fresca que exalava do Pinot Noir produzido na Côte d’Or. Diferente do que Bordeaux viveu no século XVIII, Borgonha não passou por experiências diversas. Não inventou vinhos novos, nem assistiu ao plantio de novas áreas. Enquanto a imagem de Bordeaux é toda expansão e criação, a da Borgonha revela uma evolução de gostos e técnicas, novas forças de mercado e, sobretudo, um lento processo de definição, que procurava chegar a uma noção mais precisa do caráter, do estilo e do valor do vinho produzido em todos os cantos da Côte.

 

Terroir
A região de Borgonha foi uma província da França até 1790. É, hoje, uma região administrativa francesa que engloba os departamentos de Côte d’Or, Nièvre, Saône et Loire e Yonne. Borgonha também foi, digamos, a ‘mãe’ do termo terroir. Eram os borgonheses que utilizavam a palavra para designar a inalterada unidade formada pelo solo, pela situação e por todo o ambiente da vinha. Em A História do Vinho, Hugh Johnson escreve: “É o terroir que explica a Pinot Noir ou a Pinot Noir que explica o terroir; de qualquer forma, os dois formam o poder central da Côte d’Or”.

 

A região viveu períodos de calmaria em relação às reviravoltas que ocorriam em Bordeaux, mas os séculos XVI e XVII não transcorreram sem mudanças. Uma delas foi o surgimento de bons vinhos brancos; outra, a crescente demanda por vinhos comuns. Essas alterações fizeram com que parlamentares começassem a ver com outros olhos os vinhedos. Muitos apresentaram às abadias – a Igreja dominava a maioria das vinhas – propostas que pareciam muito generosas: pagariam à vista pelos vinhedos e dariam ao clero porcentagem sobre a produção até o final dos tempos. Assim, pouco a pouco, a Igreja foi deixando de mandar na viticultura.

 

Borgonha também passou por várias fases simultâneas de transição. As duas partes da Côte – a Côte de Nuits, que se estende de Dijon a Nuits-St. Georges, e a Côte de Beaune, que vai de Corton a Santenay – abrigavam tradições bem distintas. Sob vários aspectos, a Côte de Beaune era menos desenvolvida. Tinha menos crus específicos, ou seja, vinhedos importantes pertencentes a um único dono. Na Côte de Nuits, a noção de cru foi aperfeiçoada ainda mais. Em geral, os vinhos tintos eram mais encorpados e menos aceitáveis. Os vinhedos não costumavam ser tão densos e, nessa época, a multiplicação se processava mais por meio de mudas de mergulhia, o que resultava num maior aprofundamento das raízes. No século XVIII, os proprietários dos crus mais prestigiados adotaram a prática de selecionar as melhores uvas para fazer cuvées (denominação usada na França para distinguir um vinho específico). A melhor cuba denominava-se ‘tête de cuvée’. O objetivo constistia em destacar o caráter distintivo do vinho, prolongando-se a pisa das uvas e a fermentação, com as cascas, antes de se passar à prensagem. Disso resultava um vinho mais escuro e mais tânico, que precisava envelhecer por mais tempo.

 

Têtes de Cuvée
Borgonha estabeleceu ainda uma curiosa situação: enquanto a Côte de Nuits mantinha em seus vinhedos certa proporção de uvas brancas para equilibrar a crescente tendência de seu vinho ao escurecimento e à adstringência, a Côte de Beaune procedia de maneira inversa, eliminando as uvas brancas, para fazer vinhos somente tintos. Até por volta do século XIX, a região ainda produzia vinhos brancos com variedades pequenas entre as tintas. No entanto, nenhum cru dedicava-se ao vinho branco, porque não havia necessidade. Dessa forma, a Pinot Noir acabou ocupando toda a região.

 

Pouco a pouco, a prática da Côte de Nuits de selecionar têtes de cuvée em seus clos conferiu a seus melhores vinhos maior individualidade e a capacidade de envelhecer por mais tempo. A maturação prolongada revelou ainda outras qualidades: aroma agradável e uma sutileza e profundidade nunca antes imaginadas. Para obter essa qualidade, os proprietários precisavam renovar o solo das encostas quando ocorria erosão ou esse perdia a fertilidade, e adubavam-no com extrema cautela, para não afetar o sabor. Vendo as melhorias realizadas nos vinhedos que vendera um século antes, a Igreja tentou, em vão, recomprá-los. Mas, era tarde demais. Borgonha já tinha estabelecido o seu padrão. A Igreja acusou os produtores de não estarem enviando vinhos de qualidade para determinados pontos. Provavelmente, isso era apenas uma desculpa. O que incomodava a Igreja era a valorização da terra que vendera.

 

Grands Crus
A primeira classificação oficial da Côte d’Or data de 1861, e deve-se ao Dr. Jules Lavalle, que, inspirado pelo sucesso da classificação de Bordeaux, a elaborou para a Exposition Universelle. As têtes de cuvée se tornaram famosas e foram elevadas a categoria de Grands Crus. Não era para menos: seus produtores selecionavam suas têtes de acordo com a qualidade da safra e colhiam apenas em um determinado ponto dos vinhedos.

 

Com esse terroir, Borgonha não passou por uma revolução, como outras regiões, mas teve um aumento considerável na clientela.
Uma lenda da região conta os esforços dessa conquista. Havia um vinhateiro muito alto, chamado Pierre Brosse, que decidiu ganhar o mercado parisiense com o seu vinho. Viajou para Versalhes e, após algumas semanas, estacionou nas proximidades do palácio. Foi então assistir à missa na capela do palácio e intrigou o soberano, pois parecia estar de pé quando todos estavam ajoelhados. Terminada a cerimônia, o rei mandou chamar o ‘gigante’, que, em seu dialeto, relatou a longa viagem e ofereceu-lhe uma garrafa de seu vinho. Tão logo provou, o rei começou a encomedar mais da bebida. Em 1700, o vinho percorria várias cidades e suas garrafas viajavam por toda a Europa.

 

Enquanto Borgonha se estabelecia no mercado com o tinto Pinot Noir, não muito longe dali, uma uva branca, denominada Riesling, enobrecia os vinhos da Alemanha.

 

Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.

 

Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação

Compartilhe:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Estão abertas as inscrições para o IV Seminário Internacional de Fruticultura que acontece de 25 a 27 de junho em...
Teve início a colheita de uma das duas mais importantes variedades de caqui cultivadas na Serra gaúcha, a Kioto, popularmente...
Com um reconhecimento crescente do setor mundial de vinhos enquanto país produtor qualificado e como um mercado consumidor bastante promissor,...