Uma Riesling para enobrecer os alemães
Acredita-se que a garrafa mais antiga que alguém já bebeu (e pode degustar) ocorreu em Londres, no ano de 1961. Ela tinha 421 anos e, provavelmente, sua procedência era de 1540, uma safra tida como excepcional. Naquele verão fez tanto calor que o Reno quase secou e era possível atravessá-lo a pé. Devido a isso, produziu-se um vinho tão doce e com uvas tão maduras que perdurou por muitos séculos. Essa garrafa nada mais era do que um Riesling, produzido nas encostas da Alemanha e que enobreceu fortemente os vinhos alemães.
No início do século XVI, a Alemanha atingiu o auge do sucesso com sua produção do melhor e mais abundante vinho da Europa. Na Inglaterra, o vinho da Alemanha constituía um luxo quase equiparável aos claretes franceses. Entre o final do século XV e o começo do XVI o calor foi infernal e isso tornou a vinicultura viável e lucrativa em várias regiões da Alemanha. Um fato curioso é que as pessoas, praticamente, eram obrigadas a se embrigar. Cada alemão bebia anualmente mais de 120 litros de vinho. Dizem que o fato de ser abstêmico eliminava qualquer possibilidade de ascensão na carreira eclesiástica. Na década de 1590, o bispo de Estrasburgo, Johann Von Manersheid, fundou um clube de bebedores denominado “Vom Horn” para religiosos da nobreza. Cada um dos membros tomava cerca de quatro litros por dia. Não é de estranhar que o bispo morreu com apenas 33 anos. Foi justamente nessa época, que datam as primeiras referências à Riesling, a uva branca que ascenderia o vinho alemão.
Reconstrução
Entretanto, toda esse auge em torno do vinho começou a diminuir em meados do século XVI. Várias hipóteses foram levantadas para explicar isso. Segundo uma delas, o mercado vinícola foi vítima da própria ambição, que o levou a cobrar caro pelos bons vinhos e adulterar os ruins. Outra hipótese era a concorrência com os demais vinhos. Junto a isso, ocorreu a Guerra dos Trinta Anos, que levou a Alemanha a ser o centro de várias batalhas. Em 1648, muitas cidades e, consequentemente, a maior parte de seus vinhedos, estava destruída e equipamentos vinícolas haviam desaparecido.
Em meio a essa situação catastrófica, a Igreja tomou a dianteira e começou a reconstrução dos vinhedos. Foi assim que as abadias deram início a produção da Riesling. A origem exata dessa uva é desconhecida e os primórdios de sua história são obscuros. Mas, sua qualidade era formidável. Ela resistia bem a todas as condições climáticas e demorava para amadurecer. Mas, esse longo período de amadurecimento dava à uva uma doçura incomparável e um elevado teor de acidez, que juntos formavam um vinho de longo equilíbrio e sabor intenso.
Uma vez conhecida as qualidades da Riesling, os religiosos não poderiam mais se contentar com cepas alternativas. Em 1672, o abade de Santa Clara ordenou a substituição de suas vinhas pela Riesling; no mesmo ano o bispo de St. Maximini em Trier fez o mesmo; e pouco a pouco, todos estavam plantando a uva branca. Em fins do século XVIII, o arcebispo de Trier, Clemenz Wenceslas, ordenou que num prazo de sete anos todas as cepas fossem substituídas por Riesling.
Vindima tardia
Os registros do século XVIII apontam o reconhecimento da Riesling como uma variedade ímpar na maior parte da Alemanha. A boa safra era naturalmente doce, porém algumas maneiras eram utilizadas para deixar a bebida melhor. Uma delas consistia em ferver o mosto para reduzir seu volume e aumentar o teor de açúcar. Nessa época, utilizava-se a mecha de enxofre para evitar que os vinhos fermentassem até se tornarem secos. Outro ensinamento – e este trágico – consistia em adoçar o vinho com chumbo, sobretudo quando as uvas eram colhidas ainda verdes. Foi somente em 1696 – a técnica era utilizada desde a Roma Antiga – que o médico Eberhard Gockel descobriu que o chumbo era um veneno mortal e o método parou de ser praticado.
A melhoria das condições meteorológicas no século XVIII coincidiu com a expansão da Riesling. A uva demonstrou capacidade de continuar amadurecendo nos ensolarados dias de outono e produzir vinhos doces. Foi dentro desse contexto que surgiu uma adega denominada de Kabinett (gabinete): um local para guardar objetos, ou nesse caso, as uvas. Esse ambiente era um espaço para, digamos, atingir a “podridão nobre”, tão conhecida de vinhos como o Tokay e o Sauternès. Mas, parece que os alemães não gostavam de admitir que usavam uvas podres para fabricar um vinho doce. Por isso, a história conta que essa, denominada de Spätlese, ou vindima tardia, ocorreu por acaso em 1775. Conta a lenda que certo dia, o dono de uma vinícola mandou, por intermédio de um mensageiro, avisar que estava na hora de colher as uvas para que não apodrecessem. Entretanto, o mensageiro demorou e quando chegou todas as uvas estavam podres.
Forjada ou não, o certo é que o fato fez nascer à vindima tardia (e não podridão nobre). O conceito era de que a vindima era postergada até que os frutos, podres ou não, produzissem um vinho naturalmente doce. Em 1788, foi ordenado que cada propriedade poderia escolher a data da colheita, mas desde que levassem em conta que somente às uvas bem maduras poderiam fabricar os melhores vinhos.
Assim, nesse que foi seu último ano de atividade, os abades alemães mostraram os segredos de sua Riesling. Porém, na década de 1790, os revolucionários franceses ocuparam algumas partes do país e a Riesling foi tirada de seus monges para sempre. Estava aberta à porta para a entrada do Iluminismo e da revolução no mundo dos vinhos.
Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; e História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.
Por Danúbia Otobelli
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