Nova era após Napoleão
As guerras napoleônicas transformaram a França num campo de batalha. Cerca de 1,5 milhão de franceses morreram. Apesar dos conflitos, o país continuou funcionando, e ano após ano as vindimas se realizaram como sempre. As uvas foram pisadas e os vinhos tomados. Porém, as guerras napoleônicas anunciaram uma nova era ao mundo vinícola.
Uma das primeiras mudanças ocorridas pós Revolução Francesa foi a desapropriação das terras pertencentes aos mosteiros e à Igreja. Depois de milênios dominados pelos bispos, os vinhedos passaram para as mãos dos aristocratas. O divórcio entre Igreja e terras constituiu uma mudança radical e permanente. Como já relatado nessa série, afetou a Borgonha – Bordeaux nunca fora uma região muito clerical – e atingiu, principalmente, as propriedades mais famosas da Alemanha. Em 1803, o próprio Napoleão Bonaparte convocou a Dieta de Ratisboa, instruindo os senhores da Igreja para que deixassem os vinhedos. Na região do rio Mosela, a mais dominada pelo clero, a França apoderou-se de um quarto dos vinhedos e os vendeu.
Sim, chumbo
Outra modificação no rastro das guerras napoleônicas foi no campo da ciência prática. Apesar da lentidão com que as mudanças na vinicultura eram adotadas, o século XVIII viu importantes avanços no conhecimento científico sobre os processos de elaboração e de conservação dos vinhos. O surgimento das garrafas no século anterior e as novas técnicas de conservação da bebida fizeram os produtores abandonarem velhos hábitos, como o de colocar chumbo no vinho. Sim, você leu chumbo mesmo. Este método existia desde os tempos antigos, tendo sido muito usado no século XVII, para corrigir a acidez do vinho e para conservá-lo. Além de adoçar o vinho, o chumbo era usado para conter propriedades que impediam o desenvolvimento de algumas bactérias. Produtores de Devon usavam chumbo para adoçar seus produtos e os de Poitou faziam o mesmo com seus vinhos para torná-los mais competitivos em relação aos do Loire.
Contudo, um século antes já haviam surgido as primeiras suspeitas de que a substância fosse responsável por várias doenças gastrointestinais. Dependendo da gravidade da doença provocada pelo chumbo, os sintomas podiam ser fortíssimos e levarem à perda de movimentos, cegueira, surdez e até a morte. Como muitos ainda não sabiam que o chumbo era maléfico, uma ironia se dava na indicação feita pelos médicos: eles prescreviam aos pacientes beber ainda mais vinho, pois ele era considerado benéfico para tratar de problemas digestivos. Era o caso típico de matar o paciente pela cura.
Foi o médico alemão Gockel que identificou o chumbo usado no vinho como a causa de muitas doenças entre seus pacientes. Em consequência disso, o uso de chumbo na elaboração de vinho foi proibido em algumas localidades. E foi somente depois das guerras napoleônicas que a noção de que o chumbo era perigoso para a saúde se disseminou. Porém, a substância continuou a ser utilizada. Por exemplo, um livro de culinária inglês do final do século XVIII continha uma receita que recomendava o uso de “meia libra de chumbo derretido em água abundante”. Mesmo sendo proibido, muitos produtores ainda utilizavam o chumbo para poder conservar a bebida e vendê-la até não se transformar em vinagre.
Chaptalização
Foi nessa procura por métodos para tornar o vinho mais estável que o açúcar passou a fazer parte da vinicultura. O uso do açúcar para adoçar, fortificar e conservar o vinho foi em grande parte atribuído ao químico Jean-Antoine Claude Chaptal (que se tornaria ministro do Interior de Napoleão), que defendeu a medida em trabalhos publicados em 1801. A associação entre o químico e a prática foi tão forte que, já naquela época, o uso de açúcar no processo de produção de vinho era chamado de chaptalização. Cabe ressaltar que o método já era conhecido antes mesmo de Chaptal torná-lo popular. Outros cientistas, médicos e agrônomos também fizeram a mesma recomendação e sugeriram, além do açúcar, o mel para acelerar o processo de fermentação.
As pesquisas de Chaptal foram feitas antes da Revolução, mas tornaram-se conhecidas durante o período napoleônico, já que entre as medidas para recuperar o comércio e a indústria do país estava o incentivo à vinicultura. Em 1803, o governo de Napoleão distribuiu um livro intitulado A arte de fazer vinho segundo o método de Chaptal. A obra fornecia dicas sobre solos e terrenos e apresentava técnicas de fermentação e conservação. Clássico do Iluminismo, o livro foi extremamente útil na França, onde, depois da Revolução, muitas vinícolas passaram a pertencer a pessoas com pouca ou nenhuma experiência no assunto (lembre-se: antes, eram os monges que administravam as principais vinícolas).
A partir dos estudos de Chaptal, foi o químico Pierre-Joseph Macquer que tocou num tema primordial. Ele dizia que se o problema das uvas não totalmente maduras era que produziam pouco açúcar e resultavam em vinhos muito ácidos, a solução não era acelerar a fermentação, mas aumentar a produção de açúcar. Macquer provou sua teoria espremendo uvas ainda verdes para produzir um suco azedo. Depois, acrescentou açúcar e deixou o líquido fermentar. O vinho foi guardado por um ano e quando o químico o bebeu, o vinho estava tão saboroso quanto o de uma vinícola respeitável. Ao seu ver, tratava-se apenas de corrigir um déficit da natureza em relação às uvas verdes ou pouco doces. A técnica passou a ser adotada.
Por ironia do destino ou não, foi nesse clima de introdução do açúcar na bebida que dois vinhos licorosos ascenderam no mercado: o Porto modificava-se e o Xerez se solidificava.
Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.
Por Danúbia Otobelli
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