Ampliam-se os horizontes vinícolas
Depois de relatar tantos fatos em nossa história, o mapa vinícola europeu durante a Idade Moderna está quase completo. Falta apenas inserir na nossa lista de vinhos um país: a Alemanha, que embora tenha se destacado com a Riesling (a qual já abordamos nessa página), estava longe de uma definição clara sobre o seu caráter vinícola. Hoje, pode-se dizer que a Alemanha é a única região cujo vinho não mudou radicalmente nos últimos dois mil anos. O país sempre produziu vinhos brancos leves que variavam de fraco e ácido a maduro e suculento. No entanto, se o estilo de vinho se definiu há muito tempo, suas técnicas, terminologias e distinções regionais surgiram apenas no final do século XIX, com a legendária vindima tardia da Schloss Johannisberg (vinícola localizada nas colinas de Rüdesheim).
Antes disso, as aldeias vinícolas da Alemanha mostravam-se vivamente interessadas em produzir um vinho melhor. A região de Mosela foi brindada com seis excelentes vindimas e durante cerca de dez anos a região recebeu turistas ingleses ansiosos em conhecer o romântico cenário em que se produzia o delicado Mosel. A Prússia tinha sua região vinícola enclausurada numa série de barreiras alfandegárias que lhe proporcionavam, através do Reno, acesso privilegiado ao Norte da Alemanha. Mas, a satisfação durou pouco. O clima que tinha sido generoso mudou e nos anos de 1830 a 1840 uma série de vindimas desastrosas ocorreu. E como se não bastasse a Prússia começou a concretizar sua ambição de dominar a Alemanha. Conseguiu tal intento por meio de medidas econômicas. Não havia muito sentido em pagar tarifas para transportar produtos de uma parte a outro de seu território através de outros estados alemães. Em 1838, mediante acordos entre as regiões, as barreiras alfandegárias foram derrubadas e a Alemanha unificada. Em 1834, o Zollverein (aliança aduaneira que teve como meta a liberdade alfandegária para os estados alemães – com exceção da Áustria) estava implantado. Claro, não esquecendo, sob o controle da Prússia. Mas, que efeito teve o Zollverein sobre a vitivinicultura?
Vindima tardia
A união aduaneira significou tanto perdas quanto ganhos. A região do Mosela estava aberta a todos e para lugares, onde se fabricavam vinhos baratos para consumo local o Zollverein levou vinhos melhores e ainda mais baratos. A vindima tardia e o cultivo da Riesling eram indissociáveis. A variedade era predominante e a lição do Schloss Johannisberg fazia escola. As adegas passaram a oferecer um leque de alternativas mais complexos: vinhos resultantes de vindimas antecipadas ou postergadas apresentavam diferentes graus de aroma, força e até doçura.
Foi por isso que, no começou do século XIX, os castelos Schloss Johannisberg e Steinberg sistematicamente adiavam a vindima o máximo possível. O curioso é que até os vinicultores comuns tinham de aguardar permissão para colher. Quem fosse encontrado num vinhedo fora das horas estabelecidas – e anunciadas pelos sinos da igreja – era repreendido. A vindima do cometa, em 1811, proporcionou o gosto de néctar até o mais humilde vinhateiro colheu uma safra impecável. Em 1822, as uvas começaram a apodrecer e murchar nas videiras enquanto o sol ainda brilhava. Os cidadãos se rebelaram contra a imposição da colheita com data marcada. Mas as autoridades continuaram mandando os vinicultores aguardar o desenvolvimento da podridão para determinar o início da vindima geral e, pela primeira vez, a maior parte da safra apresentou a qualidade de uma Spätlese. Mesmo assim, a Riesling tinha uma superioridade.
Com o ritual, chegou-se a conclusão que se uma vindima tardia produzia vinhos mais poderosos, uma seleção de cachos podres daria vinhos melhores ainda. Nascia o Auslese ou Ausgelesen, o termo utilizado – uma inspiração de Ausbruch, palavra que os austríacos usavam para o Tokay – para a seleção dos cachos. Ao longo dos anos plantou-se mais Riesling e deu-se atenção cada vez maior as sucessivas seleções de uvas podres.
Nesse período, havia pouca ou nenhuma uniformidade nos critérios utilizados pelos produtores para classificar seus vinhos, resultantes de seleções sempre mais cuidadosas. Depois que Schloss Johannisberg e algumas outras propriedades adotaram um sistema classificatório de ‘bom’, ‘superior’ e ‘melhor’ muitos vinhateiros se empolgaram a tal ponto com seus pequenos barris, resultantes de sucessivas triagens, que passaram a tratá-los como filhos. Conta-se que um vinhateiro tendo Beerenauslese apenas para encher um minúsculo barril chegou a dormir com o barril com medo de que a fermentação se interrompesse no frio da adega e nunca recomeçasse.
Outras regiões
Se para uns era bom, para outros nem tanto. A Alsácia se viu presa nas malhas da aduana e excluída do mercado alemão por fazer parte da França, que também não queria seu vinho. Ora, eles tinham os seus maravilhosos crus. Era uma situação difícil para uma região que precisava exportar para não se afogar no próprio vinho. Paralelamente, Estrasburgo tornava-se um dos grandes centros cervejeiros da Europa, de modo que o perigo de afogamento era duplo.
No passado, a Alsácia abastecera a área de Baden, agora Baden começava a expandir seus próprios vinhedos. Em 1850, até a Suíça fechou as portas para o vinho visando incentivar o plantio próprio. Em 1870, quando a França sucumbiu aos exércitos prussianos parecia que a Alsácia por fim teria sossego, voltando ao domínio alemão. Mas o que a Alemanha queria dos vinhedos era preço baixo. E em 1871 – quando o Zollvererein deixou de fazer sentido devido a Unificação da Alemanha – os vinhedos da Alsácia representavam 39% da produção vinícola nacional, mas poucos vinhos eram duráveis.
Outra baixa foi a Francônia. Na época da invasão napoleônica, ela era ainda umas das principais regiões vinícolas da Alemanha. Porém, mais do que as outras estava sob o domínio da Igreja e sofreu com a secularização. O estado bávaro assumiu o controle das propriedades do bispo e a vitivinicultura declinou (como em muitas regiões orientais da Alemanha que no passado possuíram vinhedos menores) devido a ocorrência de outras atividades, como a Revolução Industrial e a cerveja da Baviera. O clima adverso e a moda do chá também podem ter sido as causa da queda. Seja o que for que baixou o moral e a lucratividade, seus vinhateiros não tiveram condições de combater as pragas. Hoje em dia, o vinho da Francônia é artigo de luxo, consumido apenas por seus moradores.
Mosela
No início desse capítulo, deixamos a região de Mosela na década de 1840 lutando contra o clima inclemente e a perda do protetor manto prussiano. Nessa época, Karl Marx, que nasceu em Trier, escrevia artigos para o jornal Rheinische Zeitung: “os prussianos não se abalaram quando se trocou um tonel de 150 litros de vinho por dois pães, um quilo de manteiga e duzentos gramas de cebola. Intervenção, organização, diversificação e indústria”, pedia Marx!
O que salvou a região do Mosela foi sua qualidade e não a Prússia. Sob condições climáticas favoráveis suas crescentes plantações de Riesling produziam vinhos esplêndidos. Mesmo as safras ruins tinham excelente matéria-prima para a indústria de vinho espumante que, calcada no modelo da Champagne, expandia-se com rapidez. A década de 1850 forneceu uma sequência de três safras muito boas, permitindo aos produtores beneficiarem-se com a diminuição das tarifas inglesas sobre os vinhos.
Mais importante para a Mosela – e para toda a Alemanha – foi a introdução da chaptalização. Os alemães a chamavam de Verbesserung e ela deu-lhe a possibilidade de um vinho vendável em todos os anos. Cabe aqui destacar que os alemães, ao contrário dos franceses, continuaram preferindo tomar seus vinhos ao natural, ainda que este deixasse a desejar. A legislação de 1892 tornou obrigatório explicitar se um vinho era natural ou não (ou seja se haviam acrescentado açúcar ou não). Essa legislação é mantida até os dias atuais – já os franceses há muito tempo se convenceram de que o acréscimo sistemático de açúcar para reforçar um vinho não diz respeito ao consumidor. Com tudo isso, pela primeira vez a Alemanha tornou-se importadora de vinho.
Enquanto a Alemanha colhia seus primeiros frutos internacionais, a Europa passava por tempos difíceis. A filoxera e o oídio chegaram ao Velho Mundo e mudaram a história e a geografia do vinho para sempre.
Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; e História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.
Por Danúbia Otobelli