A arte de ‘beber estrelas’ se aprimora
Em 1882, o escritor Henry Vizetelly pontuou que “o bom Champagne não cai do céu, nem jorra das pedras, mas é o resultado de uma labuta incessante e de paciente habilidade”. Suas palavras deixavam claro que a ‘bebida das estrelas’ tinha se tornado um dos frutos da Revolução Industrial. Foi a Revolução que promoveu o enriquecimento da classe média e permitiu que um luxo, antes reservado à aristocracia, se tornasse presente em bailes, piqueniques e festas de todo o mundo.
Desde seu lançamento, mais de um século antes, o Champagne seguira pelo menos três fases distintas: como um dos vinhos brancos não-espumantes mais renomados da França; como um respeitável tinto capaz de constituir uma alternativa para os borgonhas mais leves; enfim, como um vinho efervescente dos ricos pecadores. Além disso, o advento do Champagne foi uma metamorfose do mundo vinícola. A adoção da bebida por sucessivos monarcas do século XVIII converteu as relações públicas numa forma de arte. Conta-se, por exemplo, que Frederico Guilherme da Prússia incumbiu a Academia de Berlim de descobrir a que o Champagne devia sua efervescência, mas recusou-se a fornecer uma única garrafa para que os acadêmicos experimentassem; que a soberana russa Catarina – A Grande revigorava seus jovens amigos oficiais com essa bebida; que Luís XVI tomou Champagne para enfrentar a guilhotina; que Napoleão frequentava assiduadamente a casa do vinicultor Jean-Rémy Moët (um dos fundadores da Moët & Chandon).
Mudanças
Porém, enquanto a reputação do Champagne crescera, a tecnologia de sua produção não evoluíra. Naquela época, grande parte do divertimento consistia em cortar o barbante que prendia a rolha e se borrifar com a espuma. As mulheres faziam isso com extrema frequência, mas acabavam se decepcionando quando a garrafa desprendia pouco gás ou apenas algumas bolhas. Em contrapartida a isso, uma grande quantidade de garrafas continuava a explodir nas adegas. Para que esse vinho efervescente se tornasse universal e pudesse viajar para o exterior com segurança e em quantidades industriais, era necessário resolver muitos problemas de ordem técnica.
O primeiro deles dizia respeito aos sedimentos que ficavam na garrafa. No início do século XIX, o açúcar acrescentado para fermentação redundava em inúmeras células mortas de levedo. O método utilizado para remover esse depósito consistia em, periodicamente, pegar a garrafa, bater-lhe ou sacudi-la com força e recolocá-la na pilha. O objetivo era reunir o sedimento no menor espaço possível junto à parede da garrafa, de modo que no estágio seguinte – chamado de trasfega – se pudesse transvasar o máximo de vinho antes que a borra o turvasse. Esse processo era delicado e se perdia metade do gás (e consequentemente as bolhas).
Essa era uma das mudanças urgentes da bebida e foi por meio de uma ‘viúva’ que o fato aconteceu. Aqui cabe abrir um parêntese, para falar sobre ‘Ela’. Em toda a história do Champagne, apenas uma mulher ficou conhecidíssima. Se o perfeccionismo de Dom Pérignon fez do Champagne o vinho dos príncipes, presente em todos os palácios, coube a Nicole-Barbe Clicquot-Ponsardin, que enviuvou em 1805, aos 27 anos, convertê-lo no vinho das celebrações realizadas no mundo inteiro. E foram os russos os seus primeiros aliados. Na Rússia, a viúva conseguiu o maior mercado que o Champagne já conhecera e, com o intuito de abastecê-lo, Clicquot passou a industrializar a sua pequena produção. Com a pequena herança deixada pelo marido, passou a elaborar a bebida, que mais tarde se tornaria conhecida em todo o mundo por seu rótulo amarelo. Ela começou a distribuir os Champagnes para os russos no meio das turbulências e revoluções entre a França e os demais países europeus, inclusive a Rússia. Um dos motivos pelos quais os russos se apaixonaram pela bebida foi o que chamaram de Klikofskoe, que era a extrema doçura do Champagne feito pela viúva. Antes de expedir o produto, ela retirava o sedimento e preenchia o espaço deixado (cerca de 1/3 da garrafa) com um xarope composto de vinho, açúcar e aguardente vínica. Algo parecido com o espumante Asti atual.
Fechado o parêntese, voltamos aos sedimentos. Foi justamente um dos empregados da viúva que inventou um método para evitar os tais. O processo consistia em deixar a garrafa lentamente virada de cabeça para baixo durante a fermentação, para que os resíduos das células mortas de fermento ficassem sedimentados no gargalo. Quando a garrafa era aberta, os sedimentos, sob pressão, eram lançados para fora. A garrafa podia ser arrolhada novamente em uma manobra bem mais rápida do que acontecia quando o Champagne tinha de ser decantado e, com essa rapidez, somente um pouco de pressão se perdia. A ideia prosperou e Clicquot passou a utilizar tal técnica. A viúva conseguiu manter esse processo em segredo somente por alguns anos, pois na década de 1820 ele já estava sendo utilizado por vários fabricantes. Chamavam-no de método champenoise, e a bebida passou a ser produzida em escala industrial quando se revelou o segredo do remuage. Em fins do século XVIII, foram cerca de 300 mil garrafas vendidas; em 1853, a venda chegou a 20 milhões.
E mais mudanças
Resolvido o primeiro problema, faltavam outros, ainda. O mais sério com que se defrontavam os fabricantes era o das temidas explosões que ocorriam embaixo do solo. Em 1828, 80% das garrafas explodiam. Os produtores começaram a buscar respostas para evitar o chamado casse (quebra das garrafas). Foi em 1836 que um químico inventou o sucre-oenomètre, um instrumento para medir o conteúdo de açúcar. Era necessário calcular a quantidade de açúcar para a segunda fermentação produzir o volume adequado de gás, sem explodir. A invenção reduziu em 15% a média de casse.
Todavia, para que o Champagne primitivo chegasse a seu contexto moderno, faltava apenas eliminar a doçura que fazia dele um vinho de sobremesa, transformando-o numa bebida que combinasse com qualquer refeição. A ideia do Champagne seco ocorreu a um comerciante londrino que, em 1846, provou um Champagne no seu estado natural, sem adoçante algum. Ele fez o seguinte raciocínio: os ingleses tinham muitos vinhos de sobremesa excessivamente doces, de forma que o Champagne jamais suplantaria o Porto; porém, seria uma bebida esplêndida para acompanhar a refeição, desde que fosse vinoso, em vez de adocicado. Exportado sem nenhum acréscimo de açúcar, o primeiro Champagne seco causou espanto, mas logo caiu no gosto popular. E até a empresa da La Veuve Clicquot vendeu um seco em 1857, porém esperou a viúva falecer, em 1866, para exportar um vinho perfeitamente seco, ou Brut.
A combinação de todos esses fatores estabeleceu as condições para o crescimento do Champagne. O gesto de retirar a rolha produziu o barulho que se tornou sinônimo de comemorações alegres, e o Champagne se tornou uma indústria: seis dos mais famosos fabricantes já existiam antes de 1820 (Veuve Clicquot, Heidsieck, Moët, Perrier-Jouët, Louis Roederer e Taittinger), mas três começaram a produzir depois das inovações (Joseph Perrier, Mumm e Bollinger), tendo surgido muitos outros depois.
Quando a Revolução Industrial eclodiu e as novas técnicas surgiram, as sociedades do outro lado do Atlântico e do Hemisfério Sul apareceram no cenário, mostrando que também sabiam produzir vinho. E a primeira delas foi a Austrália.
Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.
Por Danúbia Otobelli
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