Os franceses vivem a sua ‘Idade do Ouro’
![O estilo château se proliferou durante a ‘Idade do Ouro’](http://www.avindima.com.br/wp-content/uploads/2013/04/História-do-Vinho-–-Parte-XXVIII.jpg)
Depois de situar tantos causos em nossa história – a efervescência do champagne, a curiosa forma de elaborar o vinho Madeira, o nobre Tokay, as dificuldades para o desenvolvimento das Américas – não poderia ser diferente que voltássemos novamente nossos olhos para a França e, mais precisamente, para Bordeaux e Borgonha. Não se trata de fábula, no século XIX, as duas regiões viveram de fato a ‘Idade do Ouro’. Por volta da década de 1850 a última moda urbana era possuir vinhedos, sobretudo em Bordeaux. As pessoas estavam dispostas a desembolsar qualquer quantia em dinheiro para adquirir propriedades famosas. Isso ocorreu, em grande parte – e aqui exclusivo para Bordeaux –, porque se cristalizou a arquitetura ostentatória e sobretudo porque se originou o que poderíamos definir como o mito do château. No final, o que se denominou como ‘Idade do Ouro’ foi um período de abudância tanto para os camponeses humildes, que aprendiam novas técnicas, quanto para os grandes proprietários de terras.
As principais propriedades de Bordeaux e da Borgonha alcançaram nos últimos anos do século XVIII um bom nível de competência técnica baseada em décadas e décadas de lições bem aprendidas. Elas haviam praticamente definido o estilo dos vinhos pelos quais seriam sempre conhecidas, sobretudo no caso dos tintos do Médoc e da Côte de Nuits.
Bordeaux
A região de Bordeaux iniciou o século XIX ainda tentando escolher as suas cepas. A Cabernet Sauvignon, a Cabernet Franc e a Merlot estavam consolidadas, mas não eram, de forma nenhuma, universais. Desempanhavam papéis importantes a Petit Verdot e a Malbec, além de muitas variedades menores que depois desapareceram. As técnicas de vinificação também precisavam se aprimorar e a comercialização necessitava de uma classificação por qualidade. A ‘Idade do Ouro’ trouxe justamente isso. A expansão das classes médias e o aumento da prosperidade da burguesia durante a maior parte do século XIX trouxeram uma nova forma de apreciação do produto. Era o início de uma cultura do consumo, acompanhada pela produção em massa, graças à industrialização e a publicidade. Fizeram-se grandes celebrações, como a Exposição Universal de Paris em 1855, onde os franceses exibiram seus melhores vinhos. Nessa exposição de Paris foi criado o sistema de crus (primeiro, segundo, terceiro e quarto) para classificar os vinhos de Bordeaux. A classificação foi polêmica desde o início, não apenas porque foi baseada no preço de cada vinho, mas também por ter deixado vários distritos de fora. Após muitas discussões e mudanças, os vinhos passaram a ser classificados como: premier, deuxième, troisième ou quatrième cru.
Os franceses também desenvolveram várias formas para legitimiar hábitos e conferir aos produtos uma aura de respeitabilidade. E foi assim que ‘inventaram’ uma tradição que perdura até os dias de hoje. Os vinicultores de Bordeaux passaram a utilizar a palavra château no nome de suas propriedades. Seu uso se generalizou devido à pretensão de proprietários que construíram residências imponentes durante a ‘Idade do Ouro’.
A partir da década de 1850, Médoc passou a adquirir suas feições atuais, com seus casarões de aparência vagamente histórica em meio aos campos em que os carvalhos e os cervos cederam lugar a vinhas e mais vinhas. Mansões como Pichon-Lalande, Pichon-Longueville e Palmer resumem o espírito da época. Vinhos que eram conhecidos simplesmente como Margaux ou Haut-Brion passaram a ser rotulados como Château Haut-Brion. Os vinhos das propriedades com castelos eram agora associados direta e explicitamente às edificações.
O estilo dos château fez tanto sucesso entre os viticultores, que eles ganharam muito dinheiro nos anos dourados de 1860 a 1870. Só um vinhateiro muito pobre não podia se dar ao luxo de acrescentar a sua casa pelo menos uma torre que lhe permitisse chamá-la de château. Isto distinguia seus vinhos e seus proprietários dos demais, associando-os às aristocracia e, por consequencia, a tradição e linhagem, conferindo a seus donos uma aura de nobreza com raízes medievais. O sucesso foi tanto que o número de château saltou de vinte, em 1800, para setecentos em 1874 e hoje passa dos 4 mil. O apelo do nome château espalhou-se mais tarde de Bordeaux para o Loire, para o Midi e depois para toda a França e até para outras partes da Europa e da Oceania.
Muitos litros
E mesmo com diversos problemas, como a infestação por oídion – doença causada por um fungo que devastou boa parte dos vinhedos (o assunto será explorado nos próximos capítulos) – e safras medíocres, os tempos eram promissores. A escassez de vinho fez os preços dispararem. Junto a isso, a corrida do ouro que tinha lugar na Califórnia e na Austrália injetou um bocado de dinheiro na economia mundial e facilitou as negociações. E, em 1853, concluiu-se a ferrovia que liga Bordeaux a Paris. Isso encurtou as viagens e os parisienses animaram-se a visitar a famosa região vinícola e, depois de conhecê-la, passaram a desejar terras por lá. Com isso Bordeaux só crescia. Em 1858 produziu 1,9 milhão de hectolitros de vinho; em 1862, 3,2 milhões; em 1869, 4,5 milhões; e em 1875, mais de 5 milhões. Como sempre Médoc estava a frente da produção. A ‘Idade de Ouro’ também veio devido a uma outra lição aprendida durante as guerras napoleônicas: as dificuldades no transporte da bebida ensinou aos comerciantes e produtores que os vinhos só melhoravam com a idade.
Borgonha
Borgonha não viveu uma ‘Idade do Ouro’ tão espetacular quanto a apoteose de Bordeaux. A sua evolução, como já vimos em capítulos anteriores, foi sempre mais lenta, ainda mais depois do afastamento do clero. Diferentemente de Bordeaux, a maioria das propriedades era constituída de sociedades. No século XIX, quando parte das melhores terras mudou de mãos, a fragmentação se acelerou, mas até hoje a maioria dos Grands Crus da Côte de Nuits são em sociedade. Nenhum produtor sozinho tem mais de seis hectares.
Para Borgonha a ‘Idade do Ouro’ foi para o pequeno produtor. A publicação do tratado de Chaptal proporcionou a eles um trabalho mais homogêneo, com ideias novas e recicladas. Além disso, a construção da ferrovia que liga Paris a Dijon fez com que durante uma década Borgonha se tornasse o vinhedo da capital. As plantações de Gamay tomaram conta das terras. Ser um vinhateiro borgonhês significava ter a seus pés toda a França. Os tratados de livre comércio abriram as portas dos mercados alemão, belga, holandês e inglês. O fato de Borgonha produzir vin ordinaire não desencorajou ninguém: durante anos não houve concorrência. Nem por isso os bons vinhos caíram no esquecimento. Seus mercados se expandiram ainda mais que os dos vinhos produzidos com a uva Gamay. Entretanto, a região também fez algumas concessões para agradar – nem sempre felizes. Uma delas foi misturar seus vinhos Pinot Noir com outras variedades para que estes adquirissem mais peso e cor, como gostavam os ingleses. Porém, a delicada Pinot Noir não permitia isso. As uvas de Bordeaux até deixavam que alguns ajustes fossem feitos, mas, como dizem: o borgonha, ou é puro ou não é nada.
Tudo isso é apenas parte da história do século que por fim consolidou as feições modernas das propriedades e dos vinhos. Havia muito a aprender, muito a aprimorar e muitas grandes crises a superar antes de a Belle Époque assinalar o fim do século. E, em 1871, o Zollverein (aliança aduaneira que teve como meta a liberdade alfandegária para os estados alemães) ampliou os horizontes vinícolas.
Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; e História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.
Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação