Pragas devastam os vinhedos europeus
Corria o ano de 1862, quando os franceses começaram a receber inúmeras críticas sobre seus vinhos. Um número significativo de garrafas adquiridas por comerciantes honrados e entregues a importantes clientes se revelavam simplesmente intragáveis. O bom nome da indústria vinícola francesa estava em jogo. Porém, mal sabiam os franceses que eles estavam começando a enfrentar tempos extremamente difíceis. As pragas infestavam a Europa, enfraqueciam as videiras e produziam um vinho propenso a doenças. O inimigo era tão poderoso que o século XIX chegou ao fim com o mundo de Baco destroçado e a produção mundial seriamente comprometida. Muitos vinhedos foram extintos, muitas castas desapareceram dando lugar a novas cepas. Ao cabo de um quarto de século, as pragas destruíram os vinhedos da Europa e tal como o faraó que propagou as sete pragas do Egito, a Europa foi atingida por três. O oídio foi a primeira. Seu controle demorou quase uma década. Depois vieram a filoxera, a mais temida, e o míldio. Foram essas três doenças que devastaram os vinhedos e modificaram de maneira fundamental e para sempre os métodos da viticultura. O vinho encerrou sua era da inocência com as sucessivas catástrofes que o golpearam logo após a sua Idade do Ouro. Nada voltaria a ser o que era depois da longa luta para proteger e restabelecer a vitivinicultura na Europa.
Geografia modificada
Antes de mais nada é fundamental entender o contexto em que ocorreu a modificação da geografia vitivinícola. No final do século XIX, a economia europeia era movida a vinho. Nada menos que 80% dos franceses viviam direta ou indiretamente da bebida. O consumo crescia sem parar – cerca de dez litros por habitante – e as plantações aumentavam. Entre 1850 e 1875, a França plantou 200 mil novos hectares de vinhedos. O comércio era livre e o dinheiro corria fácil. Tudo propício para um desastre entrar em cena.
A filoxera foi notada pela primeira vez em 1863. Os produtores perceberam que as folhas murchavam, caíam, os frutos não amadureciam e pouco a pouco as videiras morriam. No início, a doença só causou uma leve preocupação, pois se restringia apenas em algumas áreas. Porém, em três anos, sua capacidade de destruição assustava a todos. E havia bons motivos para se preocupar. Em 1867, detectaram-se os sintomas também nos vinhedos dos paludes bordoleses. Entretanto, devido aos momentos promissores e gloriosos que a Europa estava vivendo poucas pessoas estavam preocupadas com algumas videiras moribundas. Em meio ao desinteresse geral, o pulgão ia ganhando espaço. Dez anos se passaram entre a estreia da praga em Bordeaux e o momento em que ela alcançou as melhores áreas do Médoc. Na Borgonha a filoxera começou a se proliferar em 1878 e a região da Champagne, a última atingida, notou sua aparição em 1901.
Quando a população se deu conta já era tarde demais. A praga tinha infestado a Europa e com seus hábitos peculiares e seu tamanho diminuto, era uma vilã particularmente difícil de ser capturada e estudada. Muitas pessoas se empenharam para encontrar uma solução. Em 1872, a Société d’Agriculture de la Gironde ofereceu um prêmio de R$ 20 mil francos a quem encontrasse um remédio eficaz. A lista de sugestões continha milhares de ideias inúteis, que iam desde enterrar um sapo sob cada videira até o exorcismo das parreiras.
Com a desolação total, estabeleceram-se duas grandes linhas de pesquisa: uma visando à eliminação do inseto e outra à descoberta de uma videira imune a seu efeito destruidor. Descobriu-se que em certas condições era possível eliminar o pulgão, como alagar os vinhedos durante certo tempo. Mas, essa ideia não chegou a ser plenamente viabilizada porque os vinhedos produziram vinhos de qualidade inferior. Quando a crise chegou a um limite extremo a única esperança de eliminar a praga residia na fumigação do solo por substâncias químicas: nasciam os primeiros agrotóxicos. Os produtores passaram a injetar uma solução de sulfocarbonato de potássio ou sódio no solo. Com isso, a rotina dos viticultores mudou tanto que quase se tornou irreconhecível. Já não bastava podar, cultivar, capinar e colher. Agora tinham de estar constantemente aplicando substâncias malcheirosas para proteger os vinhedos de insetos e fungos.
Cepas americanas
A outra alternativa possível era encontrar uma videira que resistisse a tantos ataques. Durante a crise do oídio cogitou-se que as cepas americanas seriam mais resistentes. Resolveu-se, então, testá-las e, ironicamente, podem ter sido elas as introdutoras da filoxera no Velho Continente, já que a praga tinha frustrado a todos que tentaram cultivar videiras no Leste dos Estados Unidos. E como apontaram estudiosos, se a filoxera fosse um inseto europeu já teria acabado com as videiras há muito tempo. Mas os franceses estavam dispostos a tudo para salvar seus vinhedos. Uma das condições consistia na enxertia maciça de plantas americanas. Na Conferência Internacional sobre a Filoxera, realizada em 1881, foi calculado que havia na França 11 bilhões de videiras. Para realizar todos os enxertos seriam necessários 3,2 milhões de quilômetros de raízes americanas e 230 mil toneladas de plantas francesas. Isso se todos os porta-enxertos produzissem. Na prática, não foi o que ocorreu: muitas das primeiras plantas americanas não se adaptaram ao solo. Foram necessários alguns anos para isso ocorrer.
Porém, enquanto os viticultores se preocupavam com a filoxera, em 1878, a terceira das pragas faraônicas abateu-se sobre a França com uma rapidez e uma ferocidade que superou até mesmo o pulgão. Os porta-enxertos importados em massa levaram com eles uma doença nova e voraz, o míldio, que, como o oídio, reduzia a colheita drasticamente e enfraquecia o vinho. Mas, nesse caso, boas novas surgiram rapidamente. Em apenas quatro anos a Faculdade de Ciência de Bordeaux descobriu um preventivo para o míldio: a famosa calda bordalesa, mistura de sulfato de cobre e cal diluídos em água.
Vinhos falsificados
Mesmo com os ‘remédios’, a década de 1880 sofreu com as vindimas minguadas, com a confusão dos viticultores que tentavam entender a situação e com as inevitáveis ondas de falsificações. Os inescrupulosos lucraram com a crise. A escassez crônica provocou uma alta de preços dos vinhos autênticos. Bebidas que eram usadas apenas para produzir vinagre ganhavam o mercado e chegou-se a produzir vinhos falsos com açúcar de beterraba. Com o tempo, os vinhos franceses tiveram seus preços reduzidos e uma nova pergunta tomava conta das manchetes: que efeitos teriam sobre o consumidor os tratamentos com enxofre e com cobre? Essas dúvidas fizeram com que novas bebidas, como o scotch e a água mineral, entrassem no mercado. O vinho só recuperaria plenamente seu prestígio e sua lucratividade mais de cinquenta anos depois. No balanço final, a consequência mais grave foi a redução da área total de vinhedos em quase um terço: 30% das videiras destruídas nunca foram substituídas. Em certas regiões, onde a viticultura era uma atividade secundária, os parreirais simplesmente desapareceram. Dizem que depois da filoxera a qualidade do vinho nunca mais foi a mesma e as regiões produtoras também não.
Nessa crise toda, Espanha, Portugal e Itália – todos concorrentes da França – viram a filoxera, a princípio, como uma ameaça e uma oportunidade, e com o passar do tempo, como um incentivo a produzir vinhos de qualidade capazes de rivalizar com os franceses. Especialmente a Itália – que tinha sido um berço da bebida e foi ofuscada pelo restante da Europa – promoveu o que se denominou de Il Risorgimento.
Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; e História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.
Por Danúbia Otobelli