História do Vinho – Parte XXXII

O retorno dos vinhos hispânicos

No Chile, a colheita é feita pela manhã, quando as uvas ainda estão frias.
No Chile, a colheita é feita pela manhã, quando as uvas ainda estão frias.

No decorrer do século XIX, os espanhóis enfrentavam um problema sério com seus vinhos. Em nenhum outro lugar, havia tanta diferença entre o vinho de exportação e o vinho de consumo local. A bebida produzida e consumida pelos camponeses era armazenada em recipientes de couro besuntados de piche, o que fornecia um gosto desagradável, tornando-a turva e nauseante. Já os vinhos destinados aos estrangeiros eram os da categoria de um xerez, tido como mais importante da época.

 

Diante de uma situação dessas, todos se perguntavam o que tinha acontecido com os vinhos espanhóis, tão famosos na época do Império? Tudo começou por volta do século XVIII, quando a Espanha se encontrava em declínio. Os tão conhecidos vinhedos do Duero tinham caído no esquecimento e Madri só tomava os vinhos de La Mancha e sem muito interesse. O mercado, como sempre, havia ditado as normas. Quando Valladolid, era a capital da Espanha, os vinhos espanhóis eram tomados com orgulho. Depois que a corte se transferiu para Madri, a vasta planície de La Macha, passou a abastecê-la, mesmo que os vinhedos de Valladolid estivessem mais próximos.

 

O problema sempre fora o transporte. Todos os vinhos eram transportados em lombo de mula e em odres que lhes conferiam seu péssimo sabor. Já as pessoas mais abastadas encomendavam em pequenos barris. Por causa dessa distinção o odor e o gosto dos barris se identificara com o prazer dos ricos. E qualquer que fosse o potencial dos vinhos espanhóis, sua exploração limitava-se ao litoral das áreas de exportação, que eram duas: Andaluzia e a vizinha Valência. Anos mais tarde juntou-se também La Rioja que começou a produzir vinhos. Sua primeira tentativa de modernizar seus vinhos ocorreu na década de 1780, quando um vinhateiro viajou a Bordeaux para aprender a conservar a bebida. Entretanto a iniciativa foi um tanto frustrada. Os métodos bordeleses introduzidos em La Rioja, e, sobretudo, os barris, constituíram um sucesso imediato. Os vinhos envelhecidos em adegas partiram triunfalmente para Cuba e México e sobreviveram à viagem. No entanto, em vez de abraçar a ideia, as autoridades reagiram com mesquinhez e inveja, declarando que todos os vinhos de La Rioja deviam ser vendidos ao mesmo preço. O custo dos barris era elevado e não foi possível manter a qualidade. Os métodos bordoleses acabaram caindo no esquecimento por meio século.

 

Pragas do bem
Por incrível que pareça foi o oídio que despertou de seu torpor o Norte da Espanha. A partir de 1850, a praga importada de Portugal nas videiras americanas, assolou os vinhedos das regiões mais chuvosas. La Rioja sofreu com a praga, mas também ganhou muito. A região já era o único fornecedor do porto Bilbao, com seus estoques cobiçados pela França. Mesmo nos anos de praga e sem dispor de ferrovias, os franceses iam bater a sua porta em busca de vinho. Em 1864, a estrada de ferro uniu as cidades e os espanhóis receberam a notícia de que a filoxera atuava na França. De repente, La Rioja viu-se em condições de vender aos franceses todo o vinho que conseguisse fabricar e uma febre de plantio tomou conta do vale.
Os viticultores locais descobriram que a vigorosa Garnacha requeria menos pulverização contra o oídio que a delicada Tempranillo. E esse foi o segredo da fragrância e da vitalidade de seus vinhos. O novo Rioja sintetizava todas as qualidades que o espanhol rico esperava encontrar num bom vinho, era ele tinto ou branco: límpido e vigoroso, leve e claro e tão longe dos recipientes de couro quanto possível.

 

Novos horizontes
Na metade de 1800, o oídio estava vencido, a Idade do Ouro se iniciava e a Espanha pretendia oferecer um vinho que não pudessem distinguir do produto local. A hora da verdade chegou em 1865, quando a Espanha inscreveu seus vinhos numa competição em Bordeaux. Ofereceu apenas Trempanillo e ganhou o primeiro prêmio. Ninguém acreditou que tal vinho fosse espanhol. Num curto espaço de tempo, surgiram outros premieres crus originais da Espanha – não só de Rioja, mas de outras regiões, como o Duero.

 

Vale ressaltar que esses vinhos de destaque surgiram muito antes da filoxera chegar à França e uma década antes da praga assolar Bordeaux. Atribui-se a ascensão de La Rioja para a fama aos vinhateiros franceses que, tangidos pela filoxera, atravessaram os Pirineus. No entanto, a Espanha já havia provado que era capaz de produzir vinhos comparáveis aos melhores similares franceses.

 

Em 1872, a euforia tomara conta dos vinhateiros de toda a Espanha. A filoxera havia devastado o Midi e os franceses suplicavam por vinho. La Rioja começou a fornecer sua cota. Nessa época agitada, as bodegas já começavam a proliferar. Os vinhateiros envelheciam seu vinho em barris de carvalho e trataram de criar um mercado próprio com base na comprovada qualidade da região. Seus vinhos envelheciam com distinção e ali estava toda a matéria-prima necessária para fazer o equivalente espanhol de um Bordeaux, um borgonha e um champanhe. La Rioja adotara uma fórmula própria, na qual o envelhecimento em barril desempenhava um papel cada vez maior.

 

La Rioja sofreria outra revolução técnica um século depois, quando uma nova geração de bodegas com ideiais contemporâneas permitiu-lhe conquistar um mercado de âmbito mundial. O mercado estava consolidado, mas a filoxera atingiu a região em 1890. Alguns viram nisso uma espécie de castigo, já que alguns comerciantes inescrupulosos haviam usado seu bom nome para vender vinho fabricado com o álcool industrial mais barato da Alemanha. Todavia, os investimentos dos bascos e a presença constante dos franceses constituíam uma base sólida. La Rioja devia sua estabilidade em parte à insignificância de suas exportações – a Espanha representava 80% de seu mercado – e, em parte, a sua estrutura profundamente burguesa. Mesmo depois da filoxera ter sido vencida na França, os franceses não se afastaram da região com a recuperação de seus vinhedos e com a chegada da filoxera e do míldio à Espanha.

 

No final do século, havia seis grandes bodegas colocando em prática as novas ideias, a maioria delas construída sob orientação e algumas com sócios franceses. O interessante é que não imitavam nenhum vinho francês e tampouco visavam o mercado francês. A Espanha constituía mercado suficiente. Madri, Bilbao, Cuba e México estavam dispostos a comprar tudo que fizessem.

 

Além Mar
Nessa época, a América do Sul começava a mostrar seu potencial e a Espanha não conseguiu impedir que suas colônias do além mar produzissem vinho. Em vez de esperar pacientemente que a metrópole lhe enviasse suas partidas avinagradas, Peru, Chile e Argentina começaram a produzir a bebida, que de início era bem precária.

 

O Chile produziu safras tradicionais durante trinta anos mas demorou para atingir qualidade. Coincidentemente a indústria vinícola chilena surgiu junto com Rioja. Em 1851, dom Silvestre Ochagavia introduziu castas bordolesas em sua propriedade no sul de Santiago. Cabernet, Merlot, Malbec, Sauvignon Blanc e Semillon foram as primeiras a chegar. Depois veio a Riesling, que demonstrou no Chile a mesma adaptabilidade revelada na Austrália.

 

Os vales chilenos centrais eram propícios a produção de uva e foram criados para abrigar uma grande indústria vinícola. Com solo fértil e ensolarado, baixa umidade e água em abundância para irrigação, suas videiras pareciam imunes a doenças e desde o início seus mostos fermentavam sem problemas para transformar-se em vinhos fortemente frutados, sadios, estáveis e transportáveis. Já a vizinha Argentina tinha as condições para a viticultura um pouco menos perfeitas e além da falta de mercado.

 

E foi justamente o mercado que determinou o estilo. O Chile criou um vinho baseado nas ideias do Norte da Espanha e influenciado pela França. Sem um grande mercado interno para vinhos de qualidade, tornou-se o principal exportador dentro da América do Sul. Sua tendência era aprimorar seus padrões. Na Argentina, ocorreu o inverso. A grande influência de imigrantes italianos no início do século XX indicou a direção que seu vinho seguiria. Seria áspero e rústico, doce e tânico, abundante e barato.

 

Enquanto que os hispânicos reviviam e apresentavam sua produção, iniciava na Europa um novo e conturbado período para a bebida. Guerra, recessão, mau tempo e Lei Seca assombravam o mundo do vinho.

 

Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; e História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.

 

Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação

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