O retorno dos vinhos hispânicos
No decorrer do século XIX, os espanhóis enfrentavam um problema sério com seus vinhos. Em nenhum outro lugar, havia tanta diferença entre o vinho de exportação e o vinho de consumo local. A bebida produzida e consumida pelos camponeses era armazenada em recipientes de couro besuntados de piche, o que fornecia um gosto desagradável, tornando-a turva e nauseante. Já os vinhos destinados aos estrangeiros eram os da categoria de um xerez, tido como mais importante da época.
Diante de uma situação dessas, todos se perguntavam o que tinha acontecido com os vinhos espanhóis, tão famosos na época do Império? Tudo começou por volta do século XVIII, quando a Espanha se encontrava em declínio. Os tão conhecidos vinhedos do Duero tinham caído no esquecimento e Madri só tomava os vinhos de La Mancha e sem muito interesse. O mercado, como sempre, havia ditado as normas. Quando Valladolid, era a capital da Espanha, os vinhos espanhóis eram tomados com orgulho. Depois que a corte se transferiu para Madri, a vasta planície de La Macha, passou a abastecê-la, mesmo que os vinhedos de Valladolid estivessem mais próximos.
O problema sempre fora o transporte. Todos os vinhos eram transportados em lombo de mula e em odres que lhes conferiam seu péssimo sabor. Já as pessoas mais abastadas encomendavam em pequenos barris. Por causa dessa distinção o odor e o gosto dos barris se identificara com o prazer dos ricos. E qualquer que fosse o potencial dos vinhos espanhóis, sua exploração limitava-se ao litoral das áreas de exportação, que eram duas: Andaluzia e a vizinha Valência. Anos mais tarde juntou-se também La Rioja que começou a produzir vinhos. Sua primeira tentativa de modernizar seus vinhos ocorreu na década de 1780, quando um vinhateiro viajou a Bordeaux para aprender a conservar a bebida. Entretanto a iniciativa foi um tanto frustrada. Os métodos bordeleses introduzidos em La Rioja, e, sobretudo, os barris, constituíram um sucesso imediato. Os vinhos envelhecidos em adegas partiram triunfalmente para Cuba e México e sobreviveram à viagem. No entanto, em vez de abraçar a ideia, as autoridades reagiram com mesquinhez e inveja, declarando que todos os vinhos de La Rioja deviam ser vendidos ao mesmo preço. O custo dos barris era elevado e não foi possível manter a qualidade. Os métodos bordoleses acabaram caindo no esquecimento por meio século.
Pragas do bem
Por incrível que pareça foi o oídio que despertou de seu torpor o Norte da Espanha. A partir de 1850, a praga importada de Portugal nas videiras americanas, assolou os vinhedos das regiões mais chuvosas. La Rioja sofreu com a praga, mas também ganhou muito. A região já era o único fornecedor do porto Bilbao, com seus estoques cobiçados pela França. Mesmo nos anos de praga e sem dispor de ferrovias, os franceses iam bater a sua porta em busca de vinho. Em 1864, a estrada de ferro uniu as cidades e os espanhóis receberam a notícia de que a filoxera atuava na França. De repente, La Rioja viu-se em condições de vender aos franceses todo o vinho que conseguisse fabricar e uma febre de plantio tomou conta do vale.
Os viticultores locais descobriram que a vigorosa Garnacha requeria menos pulverização contra o oídio que a delicada Tempranillo. E esse foi o segredo da fragrância e da vitalidade de seus vinhos. O novo Rioja sintetizava todas as qualidades que o espanhol rico esperava encontrar num bom vinho, era ele tinto ou branco: límpido e vigoroso, leve e claro e tão longe dos recipientes de couro quanto possível.
Novos horizontes
Na metade de 1800, o oídio estava vencido, a Idade do Ouro se iniciava e a Espanha pretendia oferecer um vinho que não pudessem distinguir do produto local. A hora da verdade chegou em 1865, quando a Espanha inscreveu seus vinhos numa competição em Bordeaux. Ofereceu apenas Trempanillo e ganhou o primeiro prêmio. Ninguém acreditou que tal vinho fosse espanhol. Num curto espaço de tempo, surgiram outros premieres crus originais da Espanha – não só de Rioja, mas de outras regiões, como o Duero.
Vale ressaltar que esses vinhos de destaque surgiram muito antes da filoxera chegar à França e uma década antes da praga assolar Bordeaux. Atribui-se a ascensão de La Rioja para a fama aos vinhateiros franceses que, tangidos pela filoxera, atravessaram os Pirineus. No entanto, a Espanha já havia provado que era capaz de produzir vinhos comparáveis aos melhores similares franceses.
Em 1872, a euforia tomara conta dos vinhateiros de toda a Espanha. A filoxera havia devastado o Midi e os franceses suplicavam por vinho. La Rioja começou a fornecer sua cota. Nessa época agitada, as bodegas já começavam a proliferar. Os vinhateiros envelheciam seu vinho em barris de carvalho e trataram de criar um mercado próprio com base na comprovada qualidade da região. Seus vinhos envelheciam com distinção e ali estava toda a matéria-prima necessária para fazer o equivalente espanhol de um Bordeaux, um borgonha e um champanhe. La Rioja adotara uma fórmula própria, na qual o envelhecimento em barril desempenhava um papel cada vez maior.
La Rioja sofreria outra revolução técnica um século depois, quando uma nova geração de bodegas com ideiais contemporâneas permitiu-lhe conquistar um mercado de âmbito mundial. O mercado estava consolidado, mas a filoxera atingiu a região em 1890. Alguns viram nisso uma espécie de castigo, já que alguns comerciantes inescrupulosos haviam usado seu bom nome para vender vinho fabricado com o álcool industrial mais barato da Alemanha. Todavia, os investimentos dos bascos e a presença constante dos franceses constituíam uma base sólida. La Rioja devia sua estabilidade em parte à insignificância de suas exportações – a Espanha representava 80% de seu mercado – e, em parte, a sua estrutura profundamente burguesa. Mesmo depois da filoxera ter sido vencida na França, os franceses não se afastaram da região com a recuperação de seus vinhedos e com a chegada da filoxera e do míldio à Espanha.
No final do século, havia seis grandes bodegas colocando em prática as novas ideias, a maioria delas construída sob orientação e algumas com sócios franceses. O interessante é que não imitavam nenhum vinho francês e tampouco visavam o mercado francês. A Espanha constituía mercado suficiente. Madri, Bilbao, Cuba e México estavam dispostos a comprar tudo que fizessem.
Além Mar
Nessa época, a América do Sul começava a mostrar seu potencial e a Espanha não conseguiu impedir que suas colônias do além mar produzissem vinho. Em vez de esperar pacientemente que a metrópole lhe enviasse suas partidas avinagradas, Peru, Chile e Argentina começaram a produzir a bebida, que de início era bem precária.
O Chile produziu safras tradicionais durante trinta anos mas demorou para atingir qualidade. Coincidentemente a indústria vinícola chilena surgiu junto com Rioja. Em 1851, dom Silvestre Ochagavia introduziu castas bordolesas em sua propriedade no sul de Santiago. Cabernet, Merlot, Malbec, Sauvignon Blanc e Semillon foram as primeiras a chegar. Depois veio a Riesling, que demonstrou no Chile a mesma adaptabilidade revelada na Austrália.
Os vales chilenos centrais eram propícios a produção de uva e foram criados para abrigar uma grande indústria vinícola. Com solo fértil e ensolarado, baixa umidade e água em abundância para irrigação, suas videiras pareciam imunes a doenças e desde o início seus mostos fermentavam sem problemas para transformar-se em vinhos fortemente frutados, sadios, estáveis e transportáveis. Já a vizinha Argentina tinha as condições para a viticultura um pouco menos perfeitas e além da falta de mercado.
E foi justamente o mercado que determinou o estilo. O Chile criou um vinho baseado nas ideias do Norte da Espanha e influenciado pela França. Sem um grande mercado interno para vinhos de qualidade, tornou-se o principal exportador dentro da América do Sul. Sua tendência era aprimorar seus padrões. Na Argentina, ocorreu o inverso. A grande influência de imigrantes italianos no início do século XX indicou a direção que seu vinho seguiria. Seria áspero e rústico, doce e tânico, abundante e barato.
Enquanto que os hispânicos reviviam e apresentavam sua produção, iniciava na Europa um novo e conturbado período para a bebida. Guerra, recessão, mau tempo e Lei Seca assombravam o mundo do vinho.
Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; e História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.
Por Danúbia Otobelli
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