História do Vinho – Parte XXXIII

Guerra, recessão e Lei Seca

Barris de vinho são jogados fora durante a Lei Seca americana.
Barris de vinho são jogados fora durante a Lei Seca americana.

No final do século XIX a produção e o consumo de vinho estavam crescendo no mundo inteiro e a demanda por uma bebida de qualidade indicava um novo padrão de exigência. Com um cenário desses, ninguém imaginaria que uma série de crises sucessivas deixariam a indústria vinícola patinando por meio século. Filoxera, adulterações e fraudes, superprodução, queda dos preços, fanatismo, movimentos contra o consumo de bebidas alcoólicas, mau tempo, duas guerras mundiais, barreiras alfandegárias e depressão econômica atormentavam o deus Baco. Tão logo uma ameaça era vencida, logo surgia outra. Este cenário concorreu para o que se delineava como uma nova idade das trevas para a vinicultura. Porém, desse longo trabalho de parto surgiram os novos padrões da vinicultura, de autenticidade e mesmo de hábitos de consumo.

 

Tempos difíceis
Nesse momento da história, os produtores custavam a entender que seu problema se resumia a excesso da bebida. Até pouco tempo, vinhedos inteiros haviam corrido o risco de desaparecer. Todos ainda sentiam na boca o gosto da bebida ruim, que se passava por vinho, quando este praticamente sumiu do mercado. A lembrança da escassez era ainda viva na memória dos viticultores para de repente digerir a ideia de excesso.

 

Como esse problema em mãos, cada região ou país agiu de forma independente, mas seguindo os mesmos instintos. A Argélia, que no passado adquirira vinhos franceses, agora possuía vastos vinhedos. A Espanha ampliara todas as suas vinhas. A Hungria recuperara suas uvas. Como todo esse ‘rio de vinho’, logo os preços inevitavelmente desabaram. Se em 1880, no auge na filoxera, um hectolitro custava trinta francos. Em 1900, o preço caiu para dez francos, enquanto o vinhateiro gastava quinze para produzi-lo. Indignados, muitos viticultores começaram a desistir de seus vinhedos. Protestos foram feitos. E com a ajuda dos céus, a situação logo mudou. Colheitas medíocres (devido à grande ocorrência de míldio em 1910 e 1915) e a Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918) elevaram novamente o preço do vinho. Demonstrando patriotismo, Languedoc aproveitou a farta colheita de 1914 e presenteou o exército com 20 milhões de litros. Durante o conflito e na década de 1920, o consumo de vinho na França aumentou. Em 1900, foi de cem litros por cabeça; em 1926, chegou a 135.

 

Conflitos e recessão
Em meio a isso, regulamentações importantes diziam respeito à delimitação de regiões produtoras. Uma lei de 1905 contra a falsificação tornou crime apresentar fraudulentamente um produto como sendo de uma região particular com o objetivo de aumentar seu preço. Em 1908, o governo começou a estabelecer os limites de regiões amplas que produziam bebidas diferenciadas. Era o início do sistema de appellation contrôlée (regulamentação complexa que se aplicava não somente ao vinho, mas também a outros produtos – e o qual abordaremos no próximo capítulo).

 

No entanto, paralelamente às questões políticas, crescia um movimento mais específico que era o direito de usar os nomes dos grandes vinhos, conhecidos no mundo todo (algo que no passado era controlado pelas autoridades locais). Os produtores acusavam os comerciantes de fazer isso e vice-versa. Em virtude disso, no ano de 1911, novas manifestações ocorreram. Os vinicultores do Marne saíram às ruas para protestar contra os comerciantes que, a seu ver, estavam controlando a produção e comprando vinho a granel. Esse era o motivo de os preços estarem baixos. A violência tomou conta e milhares de protestantes atacaram as empresas comerciais, derrubaram portas, quebraram garrafas, abriram barris e derramaram o vinho pelas ruas. Por fim, os manifestantes incendiaram casas e vinhedos. Para apartar os conflitos, militares foram chamados. Chegou-se a um acordo, porém antes que o governo conseguisse respirar a guerra chegava.

 

Em meios aos conflitos da Primeira Guerra Mundial, os produtores não deixaram de cuidar de seus vinhedos e a produção não parou. Os viticultores continuavam cuidando de suas vinhas, até mesmo entre as trincheiras. As grandes adegas tornaram-se fortalezas subterrâneas dos soldados e da bebida. Em pleno conflito, as safras de 1914, 1915 e 1917 primaram pela excepcional qualidade.

 

Porém, as barreiras alfandegárias atingiam a fundo a produção e a recessão tomava conta. Como a Argélia tinha duplicado sua produção, Languedoc estava submersa em vinho, e devido a outros fatores a exportação praticamente cessou. Em 1918, a Grande Guerra chegou ao fim e a perspectiva de normalidade reconfortava os povos. Mas, não era bem assim: nenhum dos países que antes do conflito compravam com tanto entusiasmo os vinhos de Bordeaux, da Borgonha e da Champagne tinham dinheiro para gastar com artigos de luxo. A Revolução Russa privava a França de seu mercado mais lucrativo. A Alemanha, Áustria e Hungria estavam arruinadas. A Bélgica levaria anos para se recuperar e a Inglaterra tratou de inventar a moda dos coquetéis, que eram mais baratos que o champagne. Só os Estados Unidos tinham dinheiro, mas eles haviam inventado uma grande piada, que ficou conhecida como Lei Seca.

 

Vinho proibido
Em 1920, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a 18ª emenda à constituição proibindo a produção, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas em todo o território americano. As únicas concessões eram feitas ao vinho usado em cerimônias religiosas, em tratamento médico e na culinária. Nascia a Lei Seca, que perdurou até 1933. Foi um tiro no próprio pé: a produção anual, antes em torno de 50 milhões de galões, passou para cerca de 76 milhões de galões nos treze anos de vigência da lei. Ninguém sabe quanto vinho entrou ilegalmente no país, sugere-se que foram mais de 70 milhões de caixas.

 

Apesar da estreita vigilância, várias soluções surgiram. E uma estava amparada na própria lei, que permitia a população produzir cidra e suco de fruta “não alcoólico” para consumo próprio. Para isso, eram vendidas “barras de uvas” que vinham com a advertência de que a adição de água e fermento daria início a fermentação e resultaria em vinho. Bastou para que muitos começasse a fazer vinho na banheira de casa. Iniciou-se um processo clandestino de produção de vinho. Dizem que Al Capone ficou irritado com o método popular e proibiu a entrada da bebida em Chicago. Com o tempo as “barras” foram descobertas, mas essa altura o fim da Lei Seca era iminente. Com a eleição de Roosevelt para a presidência, a Califórnia revogou seu Prohibition e a partir de 1933, com o país mergulhado no abismo da Depressão, a Lei Seca foi encerrada.
Entretanto, os 50 anos de crise tinham ainda um longo caminho pela frente e a Segunda Guerra Mundial apontava no horizonte.

 

Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; e História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.

 

Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação

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