Pintura tumular presente na tumba de Kha’emwese ilustra todo o processo da vindima.
Pintura tumular presente na tumba de Kha’emwese ilustra todo o processo da vindima.

Foram os egípcios que deram ao vinho o status de ‘bebida dos deuses’. Eles sempre associaram o vinho a divindades específicas e a elementos de rituais religiosos. Aliás, a oferenda de vinho aos deuses era comum na Mesopotâmia, no Egito, na Grécia e em Roma. Nas culturas antigas, o vinho também se tornou um importante símbolo de conceitos fundamentais, como a morte e a ressurreição, e passou a representar o sangue de algumas divindades em religiões diversas.
Os egípcios também foram os primeiros a registrar e celebrar em pinturas os detalhes de sua vinicultura, isso entre 3 mil e 5 mil anos atrás. Nessas numerosas pinturas expressavam com vitalidade o prazer que sentiam ao beber. Os quadros retratam cenas vívidas de moças cochilando, de casais com bichinhos de estimação, de músicas e domésticas (muitas nuas) num ritual festivo regado à bebida.

 

O cultivo das uvas e a produção de vinho aconteciam nas regiões do Delta do Nilo, onde as altas temperaturas, que em outras áreas teriam impedido a viticultura, eram amenizadas pelo mar Mediterrâneo. Por volta de 1000 a.C., um censo listou 513 plantações de uva no país pertencentes a templos. As uvas eram cultivadas por reis, religiosos e importantes autoridades. Raramente o cultivo se dava em vinhedos, mas em jardins cercados, onde a videira crescia junto com outras árvores. Uma plantação pertencente a Metjen, por volta de 2550 a.C., foi descrita assim: “100 metros de extensão por 100 metros de largura, várias árvores e videiras foram plantadas, uma grande quantidade de vinho era feita ali”.

 

As técnicas para produção não eram muito diferentes das atuais. As uvas – descritas como sendo de cor azul-escura – eram colhidas manualmente e colocadas em cestas para serem esmagadas com os pés num tonel de madeira. O sumo extraído servia para elaboração de um “vinho muito doce, espesso e apenas levemente fermentado”. A maior parte do vinho consumido era transportada por rio e por terra das regiões montanhosas para o norte e para o oeste.

 

Os povos antigos também delimitaram a classe social que deveria beber o vinho. Ele era consumido, exclusivamente, pelas elites ricas e poderosas. No Egito, somente os mais abastados bebiam vinho. As massas consumiam cerveja. Um desenho em relevo datado do século XVII a.C. mostra o rei Assurbanipal reclinado e a rainha sentada sob uma parreira de uva, degustando um vinho.
Não era apenas o vinho que ficava restrito às classes altas. As vinhas também eram de propriedade das elites. Portanto, a produção era limitada e o preço ficava cerca de cinco vezes mais alto que o da cerveja.

 

O vinho tinha um papel importante nos ritos religiosos, seja consumido como libação aos deuses ou enterrado com os mortos, para o consumo na posteridade. Em 1922, quando foi descoberto o túmulo do faraó Tutancâmon – morto com 19 anos –, encontrou-se entre os tesouros que cercavam a múmia uma coleção de jarras de vinho, que deviam acompanhar o rei em sua passagem. Vinte e seis jarras continham selos que identificavam o país de origem, o ano da colheita e o nome do vinicultor. As safras mais comuns eram do quarto, do quinto e do nono ano do reinado de Tutancâmon (1345, 1344 e 1340 a.C.). Por causa disso, acredita-se que o plantio de videiras era uma obrigação religiosa dedicada a divindades. Ramsés III escreveu: “Fiz para o senhor três jardins de videiras no Oásis Meridional, um número semelhante no Oásis do norte e vários no sul”.

 

A bebida tinha um outro uso fundamental. Ela era utilizada no processo de mumificação dos mortos. A técnica – até hoje não completamente conhecida – tinha o vinho entre os seus ‘ingredientes’. Como os egípcios tinham uma forte ligação entre a morte e a ressurreição, deram à videira essa conotação: no inverno, as videiras parecem morrer, quando as folhas caem e o tronco seca, mas seu renascimento acontece na primavera. Em muitas pinturas egípcias, a videira simboliza a ressurreição. Historiadores não sabem explicar por que ela recebe essa carga simbólica tão forte, já que outras plantas têm o mesmo ciclo natural. Sugere-se que a importância tenha sido atribuída ao fato de o fruto sobreviver à aparente morte da árvore que lhe deu origem.

 

“Havia também uma relação do vinho com a fertilidade: já se considerava que o vinho tem a capacidade de relaxar as convenções e as travas sociais, facilitando a interação das pessoas, incluindo as relações sexuais. A ligação entre o vinho e o sexo, uma conexão tanto celebrada quanto deplorada há milênios, deu origem à associação do vinho com a fertilidade”, descreveu o historiador Rod Phillips.
No Egito, ainda, o vinho era atribuído a divindades específicas. Alguns textos se referem a ele como o suor de Rá, o deus do Sol. Outros o descrevem como os olhos do deus Hórus – o tinto representando o olho direito e o branco, o esquerdo. O vinho também era associado ao sangue. Uma história conta que a deusa Hator ficou furiosa ao ser levada, por Rá, de Núbia para o Egito. Mais tarde, ela foi apaziguada pela música, pela dança e pelo vinho, e uma oferenda anual lhe era feita no Festival da Embriaguez. O vinho, neste caso, simbolizava o sangue dos inimigos de Hator. Também estava ligado a Osíris, o deus da vida após a morte, responsável pelo ciclo vital das plantas, invocado como “senhor do vinho que jorra” e “senhor da embriaguez no festim”.

 

Enfim, o Egito deu ao vinho qualidade e leveza; vinculou-o à religiosidade; tornou-o bebida de status e nobreza. Nesse último sentido, a passagem do vinho do Egito para a Grécia foi muito mais que uma viagem através da água e do tempo: foi também a popularização da bebida. Se no Egito ela era monopolizada pelos faraós, na Grécia foi abraçada pelo povo. Porém, o mundo do vinho entre os gregos é outra história.

 

Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari

 

Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação

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