Os primeiros séculos da era cristã não foram fáceis para a vitivinicultura. Com a desestruturação do Império Romano, em virtude das constantes invasões germânicas, o status que o vinho havia adquirido estava ameaçado. Contudo, vale lembrar que o impacto que os bárbaros provocaram na produção e no consumo da bebida foi muito distorcido, isso porque grande parte dos registros foi deixada pelos romanos. Estes acreditavam em uma regra geral: um povo não era civilizado se não bebesse vinho. Por isso, várias tribos, que bebiam cerveja, foram rotuladas assim.
Conforme cita o historiador Rod Phillips: “É difícil descrever o impacto que as tribos germânicas tiveram na produção vinícola, em grande parte porque os registros sobre a vinicultura naquela época são muito fragmentados. Se houve consequências negativas, entretanto, é pouco provável que tenham sido resultado direto de negligência ou de destruição deliberada dos vinhedos. Se as descrições mais negativas dos hábitos de bebida dos alemães são precisas, poderíamos com certeza imaginar que os recémchegados intensificaram a produção vinícola em vez de reduzi-la. De fato, em meio ao caos provocado pelas esporádicas invasões germânicas entre os séculos III e V, a viticultura na Europa não só ganhou forças como continuou se expandindo”.
Isso ocorreu porque as novas autoridades que substituíram os romanos se preocuparam em preservar os vinhedos. Nesse quesito, a Igreja teve papel primordial. Por meio de seus bispos e mosteiros, a instituição se transformou em grande proprietária vinícola, tendo um papel vital tanto na manutenção quanto na expansão da viticultura durante os períodos de turbulência. Porém, ela não estava sozinha nesta empreitada. Os próprios bárbaros ajudaram a manter os vinhedos. “A imagem dos monges e diligentes protegendo e administrando os vinhedos contrasta abertamente com a dos bárbaros bêbados, arrancando as videiras ou caindo embriagados pelos cantos e deixando os vinhedos morrerem por negligência. Esse contraste contribui para a idéia de que o período que se seguiu ao declínio do Império Romano pode ser chamado de Idade das Trevas, mas trata-se de uma simplificação exagerada”, escreveu Phillips.
A Igreja realmente mantinha um interesse particular em manter as vinícolas. O clero requeria um constante suprimento de vinho para a comunhão e achou por bem garantir tal provisão com uma produção própria.
O número de vinícolas pertencentes a mosteiros era considerável. Em 814, a abadia de Saint-Germain-des-Prés, perto de Paris, possuía 20 mil hectares de terras cultiváveis, das quais entre 300 e 400 hectares eram ocupados por plantações de uva. Os vinhedos estavam espalhados por diversas pequenas unidades na região rural, próximas aos rios Sena e Marne. Todavia, menos da metade dos vinhedos era cultivada pelos próprios monges. A maioria era arrendada a terceiros, que pagavam aluguel e outras taxas em vinho. A produção era de 30 a 40 hectolitros de vinho por hectare, o que supria a ordem religiosa de 640 mil litros de vinho por ano, para uso em missas, consumo dos monges e venda. O negócio funcionava da seguinte maneira: os arrendatários que cultivavam a uva ficavam com quase 700 mil litros para o seu uso pessoal e para a comercialização. O volume demonstra que havia um consumo elevado da bebida por parte dos agricultores ou a existência de um grande mercado consumidor.
Dízimo – Grande parte dos vinhedos das regiões que hoje correspondem à Alemanha, Áustria e Suíça era financiada pela Igreja. O número de vilas produtoras da bebida na região de Fulda, ao norte da Alemanha, cresceu de 40 para 400 entre os séculos VII e IX e os vinhedos também se multiplicaram na zona do Reno e da Alsácia. Conforme escreve Phillips, um dos motivos do interesse da Igreja em financiar e incentivar o cultivo de uvas pelos laicos era que a instituição cobrava um dízimo de cada paroquiano. “Em princípio, o dízimo era um décimo do dinheiro obtido com a produção anual e era pago em mercadoria. É claro que uma taxa paga em barris de vinho era muito mais facilmente convertida em dinheiro do que na forma de qualquer outro produto agrícola”. Mas além de receber vinho como imposto, a Igreja também ganhava uma boa quantidade da bebida em presentes.
Muitos bispos – pessoalmente e não como representantes da Igreja – eram proprietários de vinícolas. Nos mosteiros, tomava-se vinho não apenas no almoço e no jantar, mas também no café da manhã. Algumas ordens religiosas previam duas canecas de vinho por dia para cada monge. Grupos heréticos tentaram banir totalmente o vinho, mas a Igreja Católica rejeitou todas as tentativas. Pão e vinho eram a base da alimentação. Em 816, o Conselho de Aachen decretou que cada catedral deveria ter uma congregação de cônegos que vivessem sob a ordem monástica e tivesse, entre as suas obrigações, a tarefa de plantar uvas.
Entretanto, a produção vinícola dos mosteiros acabava sendo muito maior do que as necessidades rituais da instituição, isto porque a Igreja começou a limitar o vinho da comunhão apenas para o consumo dos padres e laicos. A instituição determinou que tanto o vinho quanto o pão eram absolutamente necessários para a salvação e que Cristo estava inteiramente presente ou no pão ou no vinho. Tal preocupação se agravava pela dificuldade de transporte do vinho em regiões cristãs mais afastadas. Isso levou a Igreja a decidir que os laicos receberiam apenas pão. O padre beberia o vinho consagrado em nome da comunidade. Esta lei foi elaborada no século XI e o uso do vinho de comunhão pelos leigos só foi restabelecido quase um milênio mais tarde, na década de 1960.
Não há dúvida de que a Igreja foi a força motriz do crescimento da viticultura em diversas regiões e épocas. À medida que o Cristianismo foi se espalhando pela Europa, os padres financiavam a plantação de vinhedos onde quer que a viticultura fosse viável, a fim de garantir o fornecimento local de vinho. Isto foi particularmente significativo em lugares distantes das regiões vinícolas. O vinho naquela época era tão instável que logo avinagrava e não suportava bem o transporte a grandes distâncias. No Império Bizantino, assim como na Europa ocidental, os vinhedos eram de propriedade tanto de religiosos quanto de laicos, mas as doações que estes últimos faziam à Igreja acabaram aumentando permanentemente e consideravelmente os domínios do clero.
Nos primeiros séculos cristãos, o vinho foi, portanto, exposto a algumas ameaças, como as forças externas dos bárbaros e a posição teológica. A Idade das Trevas quase se tornou a idade da seca. Mas, durante o governo de Carlos Magno, no final do século VIII, a produção vinícola foi novamente estimulada e o vinho ressurgiu…
Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; e História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.
Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação