
A Organização das Nações Unidas (ONU) deu um passo relevante no debate global sobre o álcool ao publicar a nova Declaração Política sobre Doenças Crônicas Não Transmissíveis e Saúde Mental, aprovada em setembro e prestes a ser formalmente adotada na Assembleia Geral. O texto estabelece diretrizes para os próximos anos e, pela primeira vez em documentos de alto nível da entidade, diferencia de forma clara o consumo moderado do abuso nocivo de bebidas alcoólicas.
Essa formulação representa uma mudança importante em relação à Organização Mundial da Saúde (OMS), que mantém a posição de que não existe nível seguro para o consumo de álcool.
Segundo o documento da ONU, o foco deve estar na redução do consumo abusivo, que está diretamente ligado a cerca de 2,6 milhões de mortes anuais em todo o mundo. Entre as medidas, o texto recomenda que cada país adote estratégias proporcionais à sua realidade, incluindo tributação seletiva e ações educativas, mas sem penalizar diretamente os consumidores moderados.
Para o setor do vinho, essa diferenciação tem peso cultural e econômico. Entidades como o Comité Européen des Entreprises Vins (CEEV) e a Unione Italiana Vini (UIV) celebraram a decisão, ressaltando que ela protege a cultura do vinho e favorece estratégias baseadas em ciência e responsabilidade, em vez de restrições generalizadas.
Na prática, a nova formulação abre espaço para iniciativas como o Wine in Moderation, programa europeu que há anos promove a educação do consumidor para escolhas conscientes e equilibradas.
A decisão da ONU ocorre em meio a um embate de narrativas. De um lado, a OMS reforça que qualquer consumo de álcool implica risco, tese sustentada em suas últimas recomendações. De outro, a ONU cedeu a pressões do setor vitivinícola e de associações de bebidas, que defenderam a distinção entre estilos de consumo, argumentando que punir a moderação não contribui para reduzir abusos.
Associações internacionais como a International Alliance for Responsible Drinking (IARD) também apoiaram o novo texto, destacando a importância de uma abordagem de “toda a sociedade”, envolvendo governos, empresas e sociedade civil.
Apesar da relevância do tema, o setor brasileiro de vinhos e bebidas ainda não se manifestou oficialmente sobre a nova declaração da ONU. O silêncio contrasta com a mobilização observada na Europa, onde vinícolas, produtores e entidades rapidamente alinharam discurso em defesa da moderação como valor cultural e econômico.
Impactos e perspectivas
A mudança de tom da ONU pode trazer reflexos significativos para o debate global e para a formulação de políticas nacionais. Países que já possuem tradição vitivinícola tendem a se beneficiar de uma narrativa que legitima o consumo moderado.
No Brasil, onde o setor de vinhos busca ampliar consumo interno e conquistar reconhecimento internacional, a discussão abre oportunidades estratégicas para posicionar o vinho como parte de um estilo de vida equilibrado, mas também traz desafios regulatórios diante da posição ainda rígida da OMS.
Visão científica
O médico cardiologista e professor Protásio Lemos da Luz, referência na área cardiovascular, prefere não comentar as recentes declarações divergentes entre a ONU e a OMS sobre consumo de álcool. No entanto, com base em mais de duas décadas de pesquisas, ele reforça que o vinho deve ser analisado de forma distinta de outras bebidas alcoólicas, sobretudo por conter polifenóis, compostos bioativos responsáveis por importantes efeitos benéficos ao organismo.
Segundo o especialista, esses compostos têm ação vasodilatadora — facilitando a circulação sanguínea — e efeito antiplaquetário, o que reduz o risco de formação de trombos, responsáveis por eventos graves como infarto e insuficiência cardíaca.
Para o professor, o fator determinante é a dose. Seus estudos indicam que o consumo moderado pode trazer benefícios cardiovasculares, enquanto o excesso aumenta significativamente o risco de câncer, doenças do fígado, acidentes e mortalidade. “Não beber nada não é a melhor coisa. O que é melhor para o sistema cardiovascular são doses pequenas, moderadas. Isso significa, em média, de uma a duas doses por dia para homens — cerca de 26 gramas de álcool. Para mulheres, a tolerância é aproximadamente a metade disso”, explica.
Ele reforça ainda que o padrão cultural do consumo é determinante. Pesquisas conduzidas em Veranópolis (RS) e em São Paulo mostraram que, quando o vinho é consumido como parte da refeição, não há impacto negativo no fígado ou no cérebro, podendo até haver benefícios. “O índice de alcoolismo entre bebedores de vinho é baixíssimo. O problema está muito mais associado às bebidas destiladas, como cachaça e conhaque”, pontua.
O cardiologista, contudo, faz ressalvas para pessoas com doenças hepáticas descompensadas, arritmias cardíacas — como fibrilação atrial — não devem consumir nenhuma forma de álcool.
Atualmente, o professor conduz também um estudo específico sobre suco de uva no Instituto do Coração (InCor), em São Paulo, ampliando sua investigação sobre os potenciais benefícios dos polifenóis além do consumo alcoólico.
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