História do Vinho – Parte XXIV

Os vinhos fortificados da Península Ibérica

Na Espanha, as bodegas tinham o mesmo estilo arquitetônico.
Na Espanha, as bodegas tinham o mesmo estilo arquitetônico.

As mudanças tomavam conta do início do século XVIII. As Guerras Napoleônicas garantiram novas perspectivas ao mundo do vinho, o Iluminismo revigorava os vinhos franceses e a Revolução Industrial estava prestes a explodir. No meio dessas eclosões, dois vinhos da Península Ibérica – que já haviam ‘dado o ar da graça’ em outros tempos – reagiam. O Xerez ascendia e se solidificava no mercado e o Porto se reafirmava, para se tornar o que é hoje.

 

Ao longo do século XVII e após conquistar a Inglaterra, o Xerez passou a ser consumido em praticamente toda a Europa. Ele circulava em toda parte, a ponto de ter levado a louvação de “indispensável em qualquer adega”. Entretanto, no início do século XVIII, eclodiu a Guerra de Sucessão Espanhola. O Tratado de Methuen desviou os negociantes ingleses para Portugal e a Ilha da Madeira. O comércio com os holandeses caiu. A venda do Xerez declinou, e quando o exército de Napoleão retirou-se da Espanha, o Xerez havia se tornado insignificante. No meio disso tudo, apenas uma cidade espanhola reagiu com energia à situação. Málaga reconstruiu seu porto, reduziu as taxas aduaneiras a um nível inferior às que eram cobradas pelo Xerez em outras localidades e, com as uvas cultivadas em suas montanhas, passou a fabricar o adocicado ‘Mountain’, sack que virou moda em meados do século XVIII. Nesse aspecto, a Igreja teve um papel fundamental. Os monges cartuxos e os frades dominicanos eram os únicos que possuíam grandes estoques de vinho. E a Igreja era também um dos maiores consumidores da bebida. Só a catedral de Sevilha tinha 24 altares, nos quais se celebravam quatrocentas missas por dia, consumindo-se 2.500 tonéis de vinho por ano.

 

Nova fase
E foi dessa forma que, em 1772, o Xerez reconquistou seu espaço. Surgiram várias bodegas, fundadas principalmente por escoceses, ingleses e irlandeses. A estrutura da indústria do Xerez estava montada e o produto se diferenciava daquele produzido nos séculos anteriores. Isso acontecia devido, primeiramente, à idade. Após meio século de estagnação, os vinhos estavam bastante concentrados e tinham estrutura para envelhecer. E foram as constantes vendas que fizeram com que o sistema característico de envelhecimento do Xerez, no que hoje se denomina de solera, surgisse. Dizia-se que o procedimento de retirar um vinho do barril e substituí-lo por um similiar mais jovem era uma invenção do Xerez, mas sabe-se que isso ocorre em qualquer adega onde o vinho se conserve bem e atenda ao consumidor interessado em uma bebida que não sofra grandes alterações de um ano para outro. Porém, o uso constante da solera revelou aos vinhateiros espanhóis aspectos de seu produto que eles praticamente desconheciam. O envelhecimento resultava em vários estilos de vinho. O mercado de exportação preferia um vinho forte e doce, que se obtinha simplesmente acrescentando uma generosa dose de aguardente a um vinho comum e deixando-o repousar nos barris por algum tempo. Enormes depósitos foram construídos para guardar os estoques, com a finalidade de aprimorar a bebida. E quando falaram para os espanhóis que as adegas subterrâneas ajudavam na conservação do vinho, eles deram de ombros e responderam: “O Xerez é o que é porque suporta dias quentes e noites frias”.

 

O Xerez conquistou seu espaço: no final do século havia quase mil bodegas na região. Em 1810, foram exportados cerca de 10 mil barris; em 1840, mais que o dobro; na década de 1860, voltou a duplicar a quantidade e, em 1873, chegou-se a 68 mil barris. Mais de 90% das exportações destinavam-se a Grã-Bretanha. Em 1864, no auge de sua popularidade entre os ingleses, o Xerez respondia por nada menos que 43% dos vinhos importados pelo país.

 

E o Porto?
Próximo dali, os vizinhos portugueses tentavam recuperar o prestígio do Porto. Detentor de todos os trunfos, o Porto viu sua garrafa ser substituída pelo Xerez e, mais tarde, ser superada pelo mesmo. Mas, afinal, por que isso ocorreu? Em primeiro lugar, os ingleses, principais apreciadores da bebida, começaram a encontrar outras variedades; em segundo, o Porto encontrava-se em crise de identidade. Em 1877, ao visitar a região que o produzia, o jornalista inglês Henry Vizetelly lamentou: “Há quase tantos estilos de vinho do Porto quanto cores de fitas num armarinho”. Com o passar dos anos, tanta aguardente havia sido misturada à bebida que os consumidores não a reconheciam mais. Isso fez com que o Xerez se destacasse. Aliado a isso, Portugal mergulhava numa série de revoluções e guerras civis.

 

Entretanto, a luta do Porto para definir sua identidade mudou quando um jovem inglês, de 22 anos, chegou a Portugal. Joseph James Forrester era bom agricultor e comerciante. Convivia com todas as classes sociais, dos aristocratas do Porto aos camponeses do Alto Douro. Passou anos estudando todas as etapas de elaboração e expedição do Porto, e concluiu que os métodos utilizados estavam destruindo o potencial do vinho. Forrester dizia que a aguardente e o suco de baga sabugueiro eram os principais vilões da bebida, que o Douro precisava elaborar um vinho natural e que os ingleses preferiam uma bebida menos fortificada. Das afirmações, a única que errou foi a que seus compatriotas não queriam bebidas fortes. Até hoje, os ingleses preferem os vinhos fortificados e licorosos aos vinhos ‘leves’ do Douro.

 

Forrester proclamou uma apaixonante campanha, mas não conseguiu mudar a situação. Aceitou a derrota sem lamentar. A natureza do Porto não foi alterada, mas as taxas de aguardente foram diminuídas e, com isso, o vinho evoluiu, até que, por volta de 1840, surgisse um Porto semelhante ao que conhecemos hoje.
Nessa mesma época, a Revolução Industrial dava seus primeiros passos e a bebida das estrelas, o champagne, ganhava o mundo. O elemento essencial de fabricação, o método champenoise (fermentação na garrafa), se aperfeiçoava e o champagne era vendido em massa e consumido pelas elites.

 

Fontes: A História do Vinho, de Hugh Johnson; Uma Breve História do Vinho, de Rod Phillips; História da Alimentação, de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.

 

Por Danúbia Otobelli
Foto: Divulgação

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